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Opinião|Intelectuais inorgânicos

Atualização:

Gramsci foi, sem dúvida, uma figura importante do pensamento e da filosofia da práxis (imperativo da atividade humana prática) marxista do início do século passado, cuja influência se estende até hoje na vida acadêmica, aqui e alhures. Foi um pensador que ousou apontar erros de Marx em sua visão da História. Não acreditava em leis históricas inexoráveis que levariam automaticamente a classe trabalhadora ao poder. Também discordava de Lenin, que via no econômico o fator determinante da mudança e a cultura como peça ancilar do processo que levaria ao comunismo na etapa final. Nessa linha, desenvolveu o famoso conceito de hegemonia orgânica, a ser construída por intelectuais devidamente treinados oriundos da classe trabalhadora. O poder da burguesia, segundo ele, não emanava apenas do dinheiro, mas do poder das ideias embutido na cultura dominante. Não seria suficiente controlar os instrumentos de poder da sociedade política: a polícia, o exército, o sistema legal, etc. Era preciso ir além e se assenhorear, primeiro, dos pilares em que se assenta a sociedade civil: a família, o sistema educacional, os sindicatos, etc. A primeira é o reino da força e a segunda, do consentimento. Feita a cabeça da população, a conquista da sociedade política estaria naturalmente validada. Esse trabalho de conquistar mentes e corações caberia aos intelectuais, ditos orgânicos por Gramsci, em contraposição aos tradicionais, que estariam por ora no manejo dos cordões que perpetuam, via cultura, a manutenção do regime capitalista. Parece-me que o melhor modo de entender a questão de fundo envolvida nesse processo é a tese desenvolvida por Hannah Arendt em seu brilhante livro A Promessa da Política. Ali ela nos fala da ilustre tradição de liberdade política, nascida com Platão e Aristóteles, de respeito ao outro como Homo politicus. Ela nos chama a atenção para a praça pública grega, berço da democracia ocidental, onde as diferentes opiniões eram livremente debatidas e as decisões eram tomadas pelo voto igualitário dos cidadãos livres. Também nos relembra a atitude do Império Romano, a despeito da força das armas, em relação aos povos conquistados. A Pax Romana conseguia abrir espaço para uma convivência relativamente pacífica, em que a eliminação física dos povos sob o domínio de Roma nunca se constituiu num objetivo sistemático do império, salvo em alguns casos excepcionais, como o de Cartago. Pois bem, essa ilustre tradição da vida política ocidental perdurou por 2 mil anos até que pensadores como Hegel e Marx abriram as portas, no plano filosófico, para as trágicas experiências totalitárias que se materializaram com o nazismo e o comunismo. Em última instância, o que aconteceu é que suprimiram, na prática, o espaço de manifestação do outro, aquele que discorda de nós. É nessa vertente que Gramsci se enquadra quando propõe a formação de quadros rotulados de intelectuais orgânicos comprometidos com a visão de mundo da classe trabalhadora. A verdade passa a ser a da classe social dominante. Para Gramsci, era fundamental trabalhar na sociedade em geral essa substituição de senhores: saem de cena os capitalistas e assume o palco o discurso ideológico da classe trabalhadora. Tudo se passa após um longo período em que esse processo se torna uma espécie de segunda natureza. A pedra no caminho, entretanto, foi a dura realidade. Ou seja, os estragos monumentais que ocasionaram na vida política e na economia dos povos que se viram submetidos à visão de mundo e às práticas concretas do comunismo. Por muito tempo, as vozes que se opunham aos desatinos daí resultantes eram simplesmente sufocadas (e descartadas) com o argumento de que não passavam de espasmos do pensamento reacionário de direita. Raymond Aron, autor, em 1957, de Marxismo - O ópio dos Intelectuais, foi vilipendiado na França como vendilhão do templo proletário, se é que podemos usar esses dois termos juntos em tempos de ateísmo rompante. No entanto, foi ele, e não Gramsci, que, no final da vida, foi homenageado pela juventude francesa como um intelectual comprometido com a liberdade e a verdade. Dois outros exemplos emblemáticos foram os cursos divergentes, na esfera política, de dois dos maiores intelectuais do século 20: Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre. E ainda o caso de Confúcio. O primeiro visitou a Rússia em 1923, poucos anos após a Revolução de 1917, e saiu de lá horrorizado com o que viu. Jamais deu corda ao projeto comunista. Jean-Paul Sartre, por sua vez, aderiu de corpo e alma ao novo regime, terminando seus dias, pateticamente, em Paris, distribuindo um jornaleco pró-Revolução Cultural. Jamais conseguiu chegar a bom termo em sua química (impossível) de tentar casar existencialismo e marxismo. O primeiro é o primado do individual sobre o social e o segundo, o inverso. Confúcio, contrariamente ao que rezava a vulgata dos imperadores chineses de ordem e harmonia permanentes, pregava o dever moral dos intelectuais de criticar o dirigente, mesmo pondo em risco a sua vida, quando ele abusasse do poder ou estivesse oprimindo o povo. A História do século 20 deixou clara a opressão brutal dos regimes comunistas sobre os povos que dominaram. Se na prática não funcionou, a teoria precisa ser reformulada para pôr as coisas em seus devidos lugares. No caso do intelectual orgânico gramsciano, o rótulo correto seria o de intelectual inorgânico, dado que a realidade política do mundo o expeliu de seu organismo (menos nas universidades brasileiras...). Na verdade, ontem, hoje e sempre, o compromisso do intelectual é sobretudo com a liberdade e a verdade. A liberdade no coração e a verdade na cabeça. Este, sim, seria o intelectual realmente orgânico. A classe social a que pertence não pode ser o seu norte. Ir contra ela pode ser um imperativo ético que Confúcio, milênios antes, já havia percebido. O intelectual orgânico de Gramsci não passou de mais um dos descaminhos trilhados pela filosofia marxista no século 20. *Gastão Reis Rodrigues Pereira é empresário e economista. E-mail: gastaoreis@smart30.com.br 

Opinião por Gastão Reis Rodrigues Pereira