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Opinião|Interpretação judicial e abuso de autoridade

Vinculação entre delinquência sistêmica e tradição corroeu a autoridade do Legislativo

Atualização:

Eleita em 1986, a Assembleia Constituinte iniciou seus trabalhos em 1987 – portanto, há três décadas. Mais importantes que a efeméride são as mutações sofridas pelo País no período. Naquela época os debates giravam em torno de projetos de poder excludentes, com as esquerdas invocando a soberania nacional para defender o intervencionismo governamental e o controle estatal de recursos naturais e setores estratégicos da economia, e os conservadores patrocinando propostas pró-mercado, maior abertura ao capital estrangeiro e medidas destinadas a coibir a inflação, por meio do controle da emissão de moeda e dos gastos governamentais.

Guardadas as proporções, aqueles debates refletiam diferentes visões de mundo, cujas pretensões eram moldar a realidade num sentido predeterminado. Traduziam as grandes narrativas de emancipação econômica e política prevalecentes entre o final do século 19 e o final do século 20, como o socialismo, a social-democracia e o liberalismo. O que se almejava era a transformação das relações sociais em nome de distintas visões de futuro. Três décadas depois, partidos que disputavam a primazia de impor um projeto para o País, com base nas grandes narrativas, uniram-se para cometer um estelionato político. O que almejam é passar uma borracha sobre as vantagens auferidas por empreiteiras graças a medidas provisórias compradas a peso de ouro e cercear a discricionariedade de procuradores e juízes. Sob o pretexto de coibir abuso de autoridade, primeiramente tentaram tipificar como crime as interpretações que contrariam a literalidade da lei e as divergências hermenêuticas quando não houver “razoabilidade fundamentada”. Depois recorreram a advérbios de modo e conceitos excessivamente abertos na definição do que seria abuso, em casos de prisão preventiva e conduta coercitiva.

Mais do que simplificar o debate sobre o protagonismo de procuradores e juízes, propostas como essas escamoteiam o problema da aplicação de leis abstratas e gerais a casos concretos. A começar pelo fato de que partem da premissa de que haveria uma verdade na norma interpretada, expressa literalmente por seu texto. Por despreparo doutrinário e/ou má-fé, os defensores dessas propostas se esquecem de que a interpretação de um texto legal não se esgota em seu valor léxico, dependem, também, das implicações semânticas aduzidas pela coletividade a que pertence o intérprete e onde ocorrem os conflitos que tem de dirimir. Outra ilusão que tentam vender é a ideia de que o Direito seria apenas uma concatenação lógica de proposições, um conjunto sistemático e logicamente coerente de normas. Também por despreparo e/ou oportunismo, esquecem-se de que a ordem jurídica é um sistema em constante mutação, que reflete anseios, valores, conflitos de interesse e distorções estruturais existentes na vida social.

No âmbito de sociedades complexas e heterogêneas, em que a tutela jurídica exige uma combinatória de normas, que são aplicáveis aos casos rotineiros, e princípios, que são aplicáveis aos casos difíceis, a interpretação é um momento essencial e necessário da experiência jurídica. Ela não é mero ato declaratório – longe disso, implica uma reconstrução do texto legal interpretado. Recorrendo a uma metáfora conhecida por alunos de Filosofia do Direito, a interpretação não está para a lei como o reflexo para o espelho, mas na relação que liga a semente à planta. As interpretações mais antigas e as mais recentes interagem, modificando o sistema jurídico continuamente. A interpretação dá, assim, sentido, alcance e eficácia à ordem jurídica.

A ideia de que interpretar é mostrar o que a lei diz, com o intérprete buscando o sentido vocabular ou gramatical de um texto legal, entrou em crise nas primeiras décadas do século 19, graças à vertente historicista da Filosofia do Direito alemã. Partindo da premissa de que o Direito é um fato histórico, um arranjo institucional vivo, essa vertente mostrou que interpretar é compreender a interpretação que o próprio legislador faz dos fatos, no momento em que legisla. Revelou que, apesar de a interpretação jurídica não se confundir com voluntarismo, todo juiz tem dificuldade para se afastar do contexto socioeconômico e cultural em que vive e atua, por maior que seja sua pretensão de isenção. Por isso, o desafio está em equacionar o risco de subjetividade do intérprete, por meio de técnicas hermenêuticas que controlem os efeitos jurídicos de uma decisão judicial, sem, no entanto, neutralizar a discricionariedade dos juízes, que é um fator essencial para a atualização do sistema jurídico.

Dito de outro modo: por mais que esteja submetido a determinados limites hermenêuticos, todo magistrado goza de um momento de liberdade, em matéria de juízo de oportunidade e conveniência na avaliação dos casos sob sua responsabilidade. Essa tensão entre padrões objetivos e discricionariedade, no plano da interpretação da lei, coloca outro problema não menos importante: o da legitimidade dos juízes e procuradores e de suas respectivas instituições. Pode-se dizer o que quiser da atuação da Procuradoria da República e da Justiça Federal no caso da Operação Lava Jato. Contudo, desde que alguns senadores e deputados tentaram manietar o Ministério Público e o Poder Judiciário, tratando no limite do deboche a captura do Estado por empresas e empreiteiras e procurando restringir a discricionariedade de procuradores e magistrados, alegando que caixa 2 faz parte dos usos e costumes da política brasileira, esse pragmatismo cínico e essa hipócrita vinculação entre delinquência sistêmica e tradição jogaram no chão o que restava de credibilidade do sistema partidário. Também corroeram a autoridade do Legislativo, mostrando assim quão difícil será recuperar a representatividade do sistema político para que ele se torne mais resistente à corrupção e às oligarquias e para que o País possa redefinir as funções do Estado e recuperar as noções de prioridade e de direitos.

*Professor titular da Faculdade de Direito da Usp e professor da Fundação Getúlio Vargas (GVLAW)

Opinião por José Eduardo Faria