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Opinião|Interpretação legal e dissenso judicial

Pressões conflitantes explicam o crescente descompasso entre instâncias da Justiça

Atualização:

Até onde os juízes podem guiar-se pelas consequências desejadas de suas decisões, sem perder o controle dos conflitos sob sua responsabilidade? Nos julgamentos de parlamentares e empreiteiros envolvidos em corrupção sistêmica e pluripartidária, as decisões da Justiça Federal têm sido políticas? Ou são decisões técnicas, ainda que tenham efeitos políticos? Num período de cleptocracia, em que as instituições foram corroídas moralmente, a ordem jurídica está estruturada logicamente, oferecendo solução única para cada caso concreto? Diante de um problema de interpretação em que várias soluções aparecem como possíveis, de que critérios dispõe o juiz para escolher uma solução?

Perguntas como essas ajudam a compreender porque o STF, afetado pela excessiva politização na escolha de seus últimos ministros, se dividiu nas questões relativas à execução provisória das sentenças condenatórias de segunda instância, à validade dos termos dos acordos de delação premiada firmados pelo Ministério Público e às prerrogativas do plenário para rever delações homologadas monocraticamente por um ministro-relator. Também ajudam a ver que as teorias que sustentaram determinado modelo de prática jurídica – valorizando a coerência lógica do Direito e a objetividade na aplicação de suas normas – parecem exauridas. Essas perguntas estão ligadas ainda às discussões sobre a distinção entre princípios e regras – e, por tabela, ao problema da interação de Direito, política e moral na interpretação das leis. E entreabrem a tensão entre dois modos de olhar o Direito. De um lado, a corrente que o vê como um sistema harmônico de normas objetivas e passíveis de serem aplicadas de maneira técnica e neutra pelos juízes. Essa é a corrente normativista, que enfatiza o encadeamento lógico-dedutivo das regras e valoriza o esforço de ordenação da validez formal das normas do sistema jurídico. De outro, correntes que se opõem à aplicação mecânica e neutra do Direito. São as chamadas teorias críticas, para as quais não há norma sem sentido, não existe sentido sem interpretação e toda interpretação encerra alguma subjetividade na fixação do sentido das normas, o que faz a adjudicação se converter num campo de enfrentamento político, já que os juízes podem optar pelas mais variadas interpretações para fundamentar decisões que considere justas.

A corrente normativista põe o foco na exegese das leis e na afirmação do caráter apolítico da adjudicação. A ideia é que existem métodos de interpretação que limitam a discricionariedade do aplicador do Direito, assegurando com isso a unidade das práticas interpretativas. Nessa perspectiva, a atitude dos juízes é analítica, pois olham as situações sociais a partir das normas. Lembrando O. Wendell Holmes, da Suprema Corte americana, é como se o sistema jurídico, a exemplo da matemática, derivasse de um conjunto de axiomas de conduta. O outro modo de encarar o Direito é baseado na realidade social. Aqui, a atitude dos juízes tende a ser teleológica, pois olham as normas a partir de situações concretas. O denominador entre as variantes do antinormativismo – que vão do realismo ao neomarxismo, passando pelos Critical Legal Studies – é a premissa de que a interpretação jurídica é marcada por conflitos entre valores que não podem ser resolvidos de modo neutro. Como o Direito é produto de conflitos coletivos e contingências históricas, as decisões judiciais seriam condicionadas por fatores extrajurídicos, como argumentos de conveniência política e pressões da opinião pública. Na tentativa de desconstruir o formalismo jurídico e desvendar o sentido político da atuação dos juízes, os antinormativistas alegam que as pretensões de neutralidade e racionalidade ocultam o modo como as elites se beneficiam do Direito positivo, em detrimento do resto da população.

Esse modo de ver o Direito dá valor a questões sobre a eficácia das leis, o caráter indeterminado dos postulados normativos e as contradições do normativismo. Nos anos 1960, movimentos antinormativistas empenharam-se em identificar os contextos históricos subjacentes à produção de leis e em apontar as contradições das doutrinas que apresentavam uma imagem neutra das práticas jurídicas. Nos anos 70, converteram a defesa dos direitos civis como forma de crítica ao normativismo hegemônico nos meios forenses. Nos anos 80, enfatizaram a democratização do acesso aos tribunais, mudanças no perfil da litigiosidade e a valorização das políticas de ação afirmativa, reivindicando uma atuação efetiva das Cortes Supremas em favor de minorias. E a partir dos anos 90 denunciaram os custos das mudanças legais decorrentes da necessidade de os Estados adaptarem a ordem jurídica a um contexto de reformas monetária, previdenciária e trabalhista. Assim, com a judicialização da política e a multiplicação de lacunas e ambiguidades na ordem jurídica advindas dessas reformas, as discussões sobre os limites da interpretação do Direito se converteram em campo de luta política.

O confronto entre modos opostos de olhar o Direito ajuda a identificar as mudanças significativas que estão ocorrendo nos tribunais e na cultura jurídica. E dá a medida das dificuldades do trabalho judicial numa realidade política e social complexa. No seu dia a dia, juízes de diferentes instâncias vivem sob pressões conflitantes. Por causa das brechas e contradições numa ordem jurídica em fase de reformulação, têm margem alargada de discricionariedade para criar Direito. Mas por causa da obrigação de justificar suas decisões, fundamentando-as em normas, princípios e precedentes, essa discricionariedade tem limites. Como as fronteiras entre criação e restrição são porosas, essas pressões conflitantes explicam não só o crescente descompasso entre a primeira instância da Justiça Federal e o STF nos casos da Lava Jato, como também as divergências entre os ministros da mais alta Corte com relação à autonomia da Procuradoria-Geral da República em matéria de delação premiada.

*Professor titular da Faculdade de Direito da Usp e professor da Fundação Getúlio Vargas (GVLAW)