Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Lula, um balanço

Exclusivo para assinantes
Por Carlos Alberto Di Franco
3 min de leitura

Prestes a encerrar seus oito anos de governo, o presidente Lula descerá a rampa do Palácio do Planalto e abrirá um importante capítulo da nossa história. Esta coluna, com frequência, criticou as sombras do governo que se põe. Mas a honestidade intelectual e o dever de isenção, pré-requisitos de quem pretende fazer jornalismo ético, me obrigam a reconhecer o saldo favorável dos dois governos do presidente Lula.O empenho de justiça social do presidente da República, sincero e não apenas eleitoreiro, foi sua marca. Responsável direto pela incorporação de milhões de brasileiros que viviam à margem do mercado, o fabuloso crescimento do consumo é um vigoroso atestado de inclusão. O Programa Bolsa-Família, operado com competência e sensibilidade humana pelo ex-ministro Patrus Ananias, deu certo. Legiões de brasileiros viviam em situações de extrema pobreza. O tráfico de drogas, brutal e hediondo, alicia mão de obra no mercado do desespero e da desesperança.As políticas sociais do governo, formuladas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, foram, a curto prazo, um bálsamo na chaga da miséria e da exclusão. A vida dos pobres melhorou. E isso é importante.Governos, há décadas, viveram de costas para a gravíssima crise social. A elite brasileira não soube ou não quis assumir sua parcela de responsabilidade. Agora, o rosto da fome toca no nervo exposto da insensibilidade. Para os homens de bem, no entanto, a situação pode ser um vibrante apelo à solidariedade, fortemente embotada pela cultura do egoísmo.Não é humano, por exemplo, se queixar dos incômodos urbanos provocados pelas correntes migratórias. É preciso ter a coragem de reconhecer a injustiça que se esconde no triste nomadismo. O sertanejo nordestino, tão brasileiro quanto nós, não migra por prazer. Ele é expulso de sua terra pela fome, pela infame indústria da seca, pela incompetência governamental e pela corrupção que, há décadas, transforma verbas públicas em negócios privados.Lula sofreu na própria carne o drama do retirante. Seus dois mandatos, acertadamente, privilegiaram o desenvolvimento do Nordeste. Sua popularidade não é fruto do acaso ou da força do seu carisma. Ele, de fato, melhorou a vida das pessoas. Basta pôr os pés no Recife, por exemplo, para sentir a ebulição de uma economia viva. Por isso, o povo despejou um mar de votos na candidata de Lula e reelegeu o governador Eduardo Campos.Um Sul rico e progressista, cercado por guetos de pobreza aviltante, é injusto e inviável. Trata-se de uma bomba-relógio. E já se ouvem as explosões no coração dos grandes centros urbanos. Imagens de crianças famintas são capazes de provocar matérias especiais e emoções momentâneas. Discute-se, com razão, a respeito dos desvios éticos da instrumentalização política da miséria. Poucos, no entanto, vão ao cerne do drama.Político rápido e intuitivo, Lula evitou o manejo populista da economia. Manteve a política econômica iniciada por seu antecessor. Alguns, equivocadamente, dizem que Lula nada fez. Só seguiu na rota traçada por Fernando Henrique Cardoso. Não me parece pouco. Poderia ter feito o contrário. Não fez.Seu período registrou um crescimento econômico de 37,3% (média anual de 4%). As exportações triplicaram. A inflação caiu de 12,5% para 5,6% ao ano. A taxa básica de juros reais também baixou, de 15% para 6%. O desemprego foi fortemente reduzido. A dívida externa foi paga. Não foi pouca coisa.Quanto aos costumes políticos, o desempenho do governo Lula foi deplorável. Lula é, sem dúvida, um animal político e um grande comunicador. Sua história de vida, carregada de carências e sofrimento, enrijeceu sua personalidade e o transformou num homem decidido a vencer a qualquer preço. Mas é precisamente na têmpera da sua obstinação que reside a sua maior fragilidade ética.O projeto de poder de Lula não admitiu barreiras éticas. Em nome da governabilidade e da perpetuação de seu projeto, Lula se aliou ao que de pior existe na vida pública brasileira. A relativização dos valores e a condescendência com os companheiros e aliados envolvidos em graves irregularidades viraram rotina na fala presidencial."Errar é humano", disse Lula, referindo-se aos casos mais emblemáticos de corrupção. O presidente da República, subestimando a gravidade do mensalão, acariciou a cabeça de petistas pilhados em situações no mínimo constrangedoras.Os pequenos erros mencionados por Lula derrubaram, em 2006, o ex-ministro José Dirceu, destituíram dezenas de diretores de estatais e mandaram para o espaço a cúpula do partido de Lula. De lá para cá, outros escândalos se multiplicaram como cogumelos.O governo Lula, seguindo os cânones da práxis (a manipulação da verdade se justifica na luta pelo poder), instaurou a cultura do cinismo na vida pública deste país. A simples leitura da imprensa oferece um quadro assustador da estratégia. Esbofeteou-se a verdade num escala sem precedentes. As responsabilidades submergiram num caldo pastoso e amorfo. Assistiu-se ao lusco-fusco da cidadania.O presidente Lula tem méritos indiscutíveis. Iniciou o resgate da dívida social, foi prudente na condução da economia e deu ao Brasil, pela força de seu carisma e pelos bons ventos que sopraram nos seus dois mandatos, grande prestígio internacional e notável popularidade interna. Além disso, ao contrário de seus colegas, não entrou no desvio do terceiro mandato. Foi injusto em seus recorrentes ataques à imprensa independente, mas não concretizou nenhuma ação contra as liberdades públicas.Feitas as contas, apesar das ressalvas, o presidente Lula escreveu um belo capítulo da nossa história. A todos, feliz 2011!DOUTOR EM COMUNICAÇÃO, É PROFESSOR DE ÉTICA E DIRETOR DO MASTER EM JORNALISMO E-MAIL: DIFRANCO@IICS.ORG.BR