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Mágica com as multas

O dinheiro arrecadado com punições de trânsito tem destinação legal bem determinada; não está disponível para aventuras e mirabolantes operações financeiras, que distorcem seu uso

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Por Redação
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O governo de João Doria está tentando acrescentar mais um capítulo à já longa novela das multas de trânsito na capital paulista, marcada pelo crescimento da arrecadação – tão grande e persistente que há muito levou à conclusão da existência de uma verdadeira “indústria” destinada a explorar esse tipo de infração – e pela polêmica utilização dos recursos daí advindos, que não segue com rigor o que determina a lei. Um novo capítulo que prima pela originalidade, no sentido negativo.

A brilhante ideia da Prefeitura, mostrada em reportagem do jornal Valor, consiste na pretensão de captar até R$ 400 milhões no mercado de capitais, usando como lastro para emissão de debêntures o que o Município espera receber com a aplicação de multas de trânsito. O secretário municipal de Finanças, Caio Megale, espera começar logo a captação, já no primeiro trimestre de 2018. À originalidade e à audácia – para não dizer a desfaçatez com que se trata o dinheiro das multas – acrescenta-se, assim, a pressa em dar a ele novas destinações.

Para pôr em prática a ideia, prevê-se a criação de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) para a emissão das debêntures. Ainda não foram definidos detalhes da operação, como prazos e os juros a serem pagos aos investidores, mas a ânsia demonstrada pela Prefeitura sugere que isso não deve demorar. Tanto é assim que, para avaliar o interesse do mercado na captação pretendida, a Prefeitura já apresentou sua ideia a 16 instituições financeiras, das quais 14 manifestaram simpatia por ela, segundo Marcelo Leitão, presidente da Companhia São Paulo de Desenvolvimento e Mobilização de Ativos (SPDA), que deve coordenar a montagem da operação.

Leitão – que adiantou que uma das obras que podem receber recursos assim captados é a construção de corredores de ônibus – classifica a operação como venda de ativo, o que afastaria problemas com a Lei de Responsabilidade Fiscal. No quadro pintado por Megale e Leitão, tudo parece fácil, deixando entender que, sem maiores problemas, a Prefeitura logo disporá de algumas centenas de milhões para investir.

As coisas estão longe de ser tão simples assim. Não se pode, por exemplo, excluir a possibilidade de problemas legais na execução dessa ideia. Além disso, é preciso considerar também que o lastro para as debêntures é apenas uma expectativa. Afinal, as multas são receita extraordinária, não uma receita corrente, embora na prática – errônea e abusivamente – sucessivos governos municipais fechem os olhos a isso. Não por acaso, Leitão reconhece que “o investidor corre o risco se, por acaso, a população paulistana deixar de cometer infrações de trânsito. Não há nenhum tipo de garantia ou contraprestação da cidade”.

Uma ressalva que não tem nenhum valor prático, porque é evidente que os paulistanos não deixarão de cometer infrações de trânsito. Muito mais realista é admitir que a Prefeitura vai se esforçar ainda mais do que já vem fazendo há anos para aumentar a arrecadação com as multas. Ela foi de R$ 900 milhões em 2014 e deve atingir R$ 1,5 bilhão neste ano, segundo Megale. A Prefeitura pode ser mesmo tentada a continuar a desastrada prática de negligenciar a obrigação de aplicar a receita das multas num dos setores – a educação de trânsito – estabelecidos pelo artigo 320 do Código de Trânsito Brasileiro, ao lado de sinalização, engenharia de tráfego e de campo, policiamento e fiscalização de trânsito.

Aí é que está o ponto principal da questão. O dinheiro das multas tem destinação legal bem determinada. Não está disponível para aventuras e mirabolantes operações financeiras, que distorcem seu uso. O governo Doria parece disposto, neste caso das multas, a cometer os mesmos erros, até com mais inventividade, do que seus antecessores.

O que deveria fazer, em vez disso, se quer mesmo melhorar a segurança do trânsito, é investir na educação e no esclarecimento dos motoristas. Isso nunca foi feito, porque ajuda a reduzir as infrações e os acidentes, mas também a arrecadação com as multas.