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Mandados não cumpridos

Levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que há 564.198 mandados de prisão expedidos pela Justiça aguardando cumprimento. O número é quase o dobro do total de vagas oficialmente existentes nos presídios brasileiros

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Por Redação
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As atuais condições do sistema penitenciário brasileiro já são suficientemente dantescas para levar o mais cândido dos cidadãos a duvidar da humanidade tanto dos que nele se encontram encarcerados como daqueles que – por imperativo constitucional – têm o dever de zelar pela integridade física dos custodiados pelo Estado. As cenas de violência inominável vistas recentemente nas rebeliões em presídios do Amazonas, do Rio Grande do Norte e de Roraima são apenas os episódios mais recentes de um problema antigo e intratado. No entanto, o quadro poderia ser ainda pior. Levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que há 564.198 mandados de prisão expedidos pela Justiça aguardando cumprimento. O número é quase o dobro do total de vagas oficialmente existentes nos presídios brasileiros (376.669), segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), publicados em 2014.

O relatório do CNJ não especifica o tipo de prisão ordenada nos mandados pendentes – temporária, preventiva, para execução de pena ou prisão civil, por não pagamento de pensão alimentícia – nem filtra múltiplos mandados expedidos contra a mesma pessoa. Mas resta óbvio que o cumprimento de apenas uma parte ínfima deles já seria suficiente para agravar o colapso do já falido sistema penitenciário nacional, com consequências imprevisíveis para a sociedade.

Além dos impactos que o eventual cumprimento desses mandados teria sobre as insalubres prisões brasileiras, cabe investigar a fundo as causas de um número tão elevado de decretos de prisão no País e as razões para o seu descumprimento. Vale dizer, é imprescindível que se faça a clara distinção entre política criminal e política carcerária. Somente com um diagnóstico claro sobre a mesa haverá condições para se traçar um plano que combata o problema de forma corajosa e efetiva.

Virou chavão entre os especialistas da área penal dizer que, no Brasil, “prende-se muito e prende-se mal”. Os dois advérbios ensejam um debate mais aprofundado. Quando se tem mais de meio milhão de mandados de prisão sem cumprimento não se pode dizer, evidentemente, que aqui se prende muito. Tampouco pode-se dizer que prendemos “mal” sem antes haver um levantamento preciso sobre a natureza das prisões decretadas e os crimes que lhes deram origem. Com base nessas informações, a sociedade brasileira – por intermédio do Congresso Nacional – precisa enfrentar o inarredável debate sobre a atual política criminal vigente no País. A absoluta falência da administração penitenciária impõe a discussão sobre a adoção de penas restritivas de direitos em contraposição às de privação de liberdade nos casos de crimes de menor potencial ofensivo, principalmente quando envolvem réus primários, que hoje são mandados para presídios onde terão contato com criminosos capazes de transformá-los em verdadeiros facínoras.

Com 175.219 mandados não cumpridos, São Paulo lidera o ranking de prisões pendentes. O número é maior do que a soma dos três Estados imediatamente seguintes (Minas Gerais, com 49.425; Rio de Janeiro, com 44.607; e Pernambuco, com 36.925). Segundo André Kehdi, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a situação paulista é um “faz de conta de que há justiça”. Mas, se por um lado o grande número de mandados de prisão não cumpridos pode revelar uma suposta falta de critério da Justiça – ou o comedimento dos juízes na adoção de penas alternativas quando cabíveis –, por outro atesta a incapacidade das polícias estaduais de cumpri-los.

A solução para a crise do sistema penitenciário passa, necessariamente, pelo corajoso debate acerca da política criminal brasileira e por uma profunda reformulação dos aparatos de segurança dos Estados. Sem esta abordagem, a carnificina nos cárceres será uma triste rotina.