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Opinião|‘Manu militari’, ou o trio elétrico macabro

Quando o governo patrocina a truculência e dela se envaidece, algo vai muito mal

Atualização:

No país das infâmias, sejamos infames nós também. Ao menos sejamos infames nos trocadilhos e reconheçamos logo: em política, a partir de agora, a propaganda é a arma do negócio. A recíproca é verdadeira: a arma é a propaganda política da vez. Michel Temer mandou plantar coturnos na Cidade Maravilhosa com o único propósito de fazer propaganda de si mesmo.

A prova é documental. Tão logo despachou as tropas para o Rio de Janeiro, o Planalto mandou publicar anúncios para se gabar do seu improviso armado. Eis a chamada de uma peça publicitária: “O governo, que está tirando o país da maior recessão da sua história, agora vai tirar o Rio de Janeiro das mãos da violência”. (Anote-se: esses anúncios são pagos, muito bem pagos, com dinheiro público.)

Os termos da propaganda não deixam dúvida: não se trata de uma publicidade para explicar como funcionaria a intervenção federal (a explicação, aliás, não veio até agora); trata-se, isso sim, de armas e fardas nas ruas para dar consistência material à propaganda. A campanha não serve para orientar as pessoas, serve somente para que o governo se vanglorie das tropas que mandou para o Rio.

Como a reforma da Previdência malogrou – ela mesma baseada numa estratégia publicitária que vilipendiou o quanto pôde a imagem do servidor público para enaltecer o inexistente civismo governamental –, os marqueteiros palacianos partiram em busca de um novo pretexto para falarem bem do chefe e só conseguiram encontrá-lo na violência, que, graças à corrupção e à irresponsabilidade de autoridades públicas, municipais, estaduais e federais, se instalou nos domínios do Cristo Redentor.

Para o governo, portanto, a tragédia carioca não passa de pretexto oportunista. Os objetivos essenciais da atribulada, destrambelhada e atrapalhada intervenção federal – que o leigo vem chamando, não sem alguma dose de razão, de intervenção “militar” – não têm nada que ver com tráfico de drogas, com comércio ilegal de armamentos ou rajadas de metralhadora aleatórias; os objetivos essenciais são de natureza propagandística, estão a serviço da obsessão de fabricar um ou dois pontos de popularidade para um presidente impopular. O governo aproveitou-se da dor das famílias desmembradas pelos tiroteios, aproveitou-se do medo generalizado para tentar tirar daí uma casquinha eleitoreira. A propaganda oficial não respeita ninguém. A propaganda oficial é a arma do negócio.

Mais ainda. Por ser uma estratégia publicitária, a intervenção deixará seus saldos negativos não apenas nos cadáveres, mas, principalmente, no imaginário político do brasileiro. Qualquer propaganda de governo, já sabemos disso, faz mal à saúde (o ministério da Saúde, se não fosse cúmplice, bem que poderia lançar uma advertência). Nesse caso em particular, a propaganda de governo fará muito mal à saúde dos valores democráticos.

A venda de uma solução brucutu para problemas de ordem pública estimula a crença de que a força bruta resolve as mazelas de democracia. A nova campanha de imagem do governo joga lenha na fogueira dos discursos odientos, como o de Jair Bolsonaro, e convida o cidadão a acreditar que a lei do mais forte, que é a lei do crime, serve como critério para uma política de Estado. Não surpreende que altas patentes do Exército, durante o início da intervenção, se tenham queixado da Comissão da Verdade. Não surpreende que ajam para dificultar a identificação dos soldados nas ruas. Não surpreende que, para revistar Deus e o mundo, exijam os mandados coletivos – sobre os quais um editorial do Estado, Ideias perigosas, de 21 de fevereiro, alertou: “O desejo de acabar com o crime não pode atropelar os direitos e garantias dos cidadãos – a não ser que se esteja a falar de estado de defesa ou de estado de sítio, quando alguns desses direitos são parcialmente suspensos, o que obviamente não é o caso do Rio de Janeiro. O combate à criminalidade jamais será bem-sucedido se estiver assentado na violação da lei”.

Em plena Quaresma, desfila no Rio um trio elétrico macabro, cujo enredo é o medo e cujo fim é gerar dividendos de imagem a favor da Presidência da República. Desse desfile, repita-se, vão sair feridos de morte não apenas as vítimas desorientadas e desprotegidas que são baleadas na Cidade Maravilhosa, mas, principalmente, as garantias democráticas. Até mesmo a urbanidade e a boa educação sairão perdendo.

No sábado 24 de fevereiro, na primeira página do Estado uma foto mostra militares fotografando moradores de comunidades da zona oeste do Rio, a pretexto de checar antecedentes criminais, como se fossem todos suspeitos. “É muita humilhação”, reclamou um deles. “Quero ver fazer isso na zona sul”. A Defensoria Pública declarou que as medidas são abusivas, mas, indiferente às queixas, o trio elétrico da Quaresma passa.

Michel Temer pode não ser candidato a sucessor de si mesmo, mas é, sim, candidato a Capitão Nascimento, o herói dos filmes Tropa de Elite. Ou a Rambo. Ou a Conde Drácula, desde que fardado. É candidato a se alistar no serviço militar. Tanto é que, para coroar sua investida – não contra o crime, mas contra a sua impopularidade férrea –, nomeou um general para o Ministério da Defesa. É a primeira vez – desde que a pasta foi criada, no governo Fernando Henrique – que um militar assume esse ministério como seu titular. Dizer que isso é um “retrocesso” (como afirmou o editorial de ontem do Estado) é dizer pouco. O que está em curso é uma escalada de militarização da política – e do Estado – cujas consequências para a democracia são imprevisíveis. Quando o governo patrocina a truculência e dela se envaidece, publicamente, algo vai muito mal.

Com velocidade, apetite e fúria, Temer promove a ideia de que as armas podem substituir a política. Ele, que nunca se deu bem em cima de palanques, agora parece pleitear uma segunda chance em cima de tanques.

*Jornalista, é professor da ECA-USP