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Opinião|Mario de Andrade

Atualização:

Há 70 anos, em fevereiro, falecia em São Paulo Mario de Andrade. Foi enterrado no Cemitério da Consolação, acompanhado de muitos e, no depoimento de Antonio Candido, "impressionava a tristeza profunda de todos, como se todos sentissem um enorme vazio na cultura do Brasil". A irradiação da pessoa, a criativa abrangência da obra e a singularidade do papel que Mario exerceu na vida intelectual brasileira ininterruptamente, a partir da Semana de Arte Moderna de 1922 até a sua morte, elucidam a força do sentimento do vazio detectado pela sensibilidade de Antonio Candido. Mario foi muitos num só - "Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta", como disse em conhecido poema. Nele a "sabença" do poeta, romancista, contista; do arguto e erudito crítico literário e das artes plásticas; do musicólogo, do precursor estudioso da cultura popular conjugava-se com o sentido da missão que o animava, voltado para a inovação das artes e do pensamento brasileiro. Essa missão teve impacto e influência exercida por meio dos seus escritos, da amplitude única da sua correspondência com seus contemporâneos e os mais novos que manteve, no cultivo da amizade, a literatura próxima da vida e da sua atuação no espaço público. Nesta soube traduzir pensamento e ação quando implantou e dirigiu, de 1935 a 1938, o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo - pioneira iniciativa em nosso país da expansão e incorporação cultural de inspiração democrática. O modernismo, ruidosamente inaugurado pela Semana de 1922, foi uma ruptura com as convenções do academicismo. Assumiu-se como uma vanguarda, buscando de diversas maneiras a inovação. Representou um movimento no âmbito do qual convergiram três princípios fundamentais, que se complementavam: "o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência nacional" - como observou Mario na sua conferência-avaliação de 1942. A modernidade é uma palavra em constante busca de significado e o modernismo, no qual se radica, não é uma escola, mas uma linhagem - uma família de afins, presente em vários continentes nas especificidades de distintas culturas. É o que pontuou Octavio Paz, que tanto refletiu sobre as vanguardas literárias, na sua Conferência Nobel. Nela observou, tratando da sua experiência de poeta, que esta busca é uma "quête", uma procura incessante, no sentido alegórico, do graal. Essa experiência tem alcance mais geral. Dona Gilda de Mello e Souza, com quem aprendi, não só na "palavra afiada" dos seus textos, mas no convívio pessoal, a apreciar a personalidade e a obra de Mario de Andrade, na sua análise de Macunaíma observa que a aventura dessa rapsódia, na qual se mesclam o popular e a alta cultura, é a retomada carnavalizada da Demanda do Santo Graal. É a "quête" do muiraquitã, a pedra mágica de cor verde. A travessia intelectual de Mario nas suas múltiplas facetas é a procura do muiraquitã da cultura brasileira. Nessa travessia e porque essa busca é tanto individual quanto parte de um movimento coletivo que liderou, com as características da sua personalidade, que em Mario vida e obra se conjugam, iluminando, ao mesmo tempo, a época em que viveu e os debates que a caracterizaram. Daí o interesse e o mérito de um novo livro de Eduardo Jardim que, dando sequência aos seus estudos anteriores, elaborou uma relevante biografia intelectual de Mario de Andrade. A chave explicativa do livro de Eduardo Jardim é a análise de certas tensões recorrentes que se desdobram na vida e na obra de Mario, atuando como dicotomias complementares, instigadoras do seu percurso. Destaco, entre as apontadas por Jardim, impulso lírico/inteligência crítica, nacional/universal, cultura letrada/cultura popular, preservação da individualidade/apelo coletivo, inovações formais/exigências materiais do fazer artístico. Essas tensões, nas suas criativas interações, foram experienciadas por um ser de muitas facetas que lidou com os conflitos entre a "vida de cima", consciente e elevada, e a "vida de baixo", com suas sombras e seus instintos, como disse em carta a Oneyda Alvarenga. Ilustrativo desses conflitos, como destaca Jardim, é a franqueza da sua avaliação pessoal a respeito da complementaridade dos seus dois retratos, o de Portinari e o de Segall, em carta a Henriqueta Lisboa. No de Portinari apreciou o olhar do amigo que captou com técnica e expressou com arte a sua bondade. No de Segall reconheceu, com desconforto, que tinha destacado na argúcia da sua mirada "o mais sorrateiro dos seus eus". O ambiente da sua família e da sua casa, a cidade de São Paulo, onde nasceu em 1893 e viveu a maior parte da sua vida (a exceção são os difíceis anos no Rio de Janeiro, de 1938-1941), os amigos da Semana e dos anos iniciais do modernismo fizeram de Mario um ser paulista. São Paulo é a sua querência, muito presente na sua poesia, desde Pauliceia Desvairada (1922) até o fecho da sua obra poética, que culmina com Meditação sobre o Tietê (1944-1945). Mario, no entanto, não era bairrista. Identificou-se com o Brasil. O tema da brasilidade, sem petrificações zelotistas, permeia a sua obra. Como pontua Eduardo Jardim, Mario de Andrade sublinhou o caráter unitário da entidade nacional, desgeografizando, e não localizando o espaço da aventura de Macunaíma. Recriou, na tessitura da sua rapsódia, manifestações culturais de várias regiões do País, mesclando de maneira própria o popular e o erudito. Operou nesse romance, como na sua obra e na vida, à maneira de "um tupi tangendo um alaúde". Esse verso premonitório de Pauliceia Desvairada aponta, na lição de dona Gilda, para a criativa complementaridade das interações do Brasil com o mundo que singularizam a dinâmica da sua obra e da sua atuação. *PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS E MEMBRO ELEITO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

Opinião por Celso Lafer