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Meia página virada

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Por Redação
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O enredo parecia levar a outro desfecho. Dias antes do segundo turno da eleição presidencial no Egito, a junta militar que governa o país desde a deposição do ditador Hosni Mubarak, em fevereiro do ano passado, reinstituiu o estado de emergência abolido pouco antes, depois de 31 anos como fachada legal para os crimes continuados do regime. Logo em seguida, a Justiça controlada pelo Conselho Supremo das Forças Armadas que substituiu Mubarak dissolveu o primeiro Parlamento livremente eleito pelos egípcios. As urnas haviam dado aos candidatos islâmicos, notadamente do Partido Liberdade e Justiça, o braço político da Irmandade Muçulmana, cerca de 70% das cadeiras da Casa. Os poderes legislativos foram transferidos aos militares. O colegiado incumbido de preparar uma Carta democrática para o país foi extinto. Realizado o segundo turno, enquanto se contavam os votos dados aos finalistas da rodada inicial - o islâmico Mohamed Morsi e o marechal Ahmed Shafiq, o último primeiro-ministro da ditadura -, a junta editou uma Constituição provisória e excluiu das atribuições do futuro presidente a política externa, o orçamento das Forças Armadas, as estatais sob controle militar e a segurança interna. A cada dia que passava sem a proclamação dos resultados - a comissão eleitoral alegava que teria de examinar 456 denúncias de irregularidades - cresciam as suspeitas de que um golpe militar estava a caminho.Embora a apuração aberta ao público indicasse a vitória de Morsi, a súbita comemoração de Shafiq confirmava os temores de que a junta iria sagrá-lo. A Irmandade Muçulmana, que havia tido um papel ambíguo na Revolução de 25 de Janeiro, conduzida em ampla medida por jovens liberais e seculares, desta vez tomou a iniciativa de ocupar a Praça Tahrir, no centro do Cairo, preparando-se para o pior. Eis que, no sexto dia da concentração, para surpresa de muitos o órgão eleitoral anunciou que Morsi batera Shafiq por 51,7% a 48,3% dos votos. Pela primeira vez desde a sua formação, há 84 anos, a Irmandade Muçulmana - na clandestinidade a maior parte do tempo, com muitos de seus membros presos, torturados e mortos - assume a presidência em seu país e cria um fato sem precedentes no mundo árabe.Um dia se saberá por que, afinal, os militares resolveram acatar a vontade da (restrita) maioria do eleitorado egípcio, assentando um marco histórico de consequências incertas na mais convulsionada área do globo. Por si sós, ou se entendendo em segredo com os islâmicos - e, ao que se diz, com os EUA -, podem ter concluído que o custo de reinstalar a ditadura (que a isso equivaleria entregar o Executivo a um camarada de armas) seria incomparavelmente maior do que o risco de admitir a vitória de um candidato islâmico. Sem falar que, por via das dúvidas, os generais já haviam desossado o poder presidencial e que Morsi não é um radical. Tampouco era o preferido da Irmandade para as eleições. Foi escolhido quando a junta vetou o mais aguerrido candidato original Khairat al-Shater - que, aliás, levou para o movimento Morsi, um engenheiro de profissão, educado nos Estados Unidos, e de fala tediosa. Militante, passou meio ano nas prisões de Mubarak, mas nem por isso se tornou um ferrabrás. No discurso da vitória, prometeu ser "presidente de todos os egípcios", aludindo à minoria cristã copta, frequentemente perseguida pelos muçulmanos. Para respaldar a promessa, desfiliou-se da Irmandade e do seu partido e anunciou que formará um gabinete de união. Prometeu também respeitar os acordos firmados pelo Egito, ou seja, o tratado de paz com Israel.Ele evitou atacar os militares, com os quais, mal ou bem, terá de se entender, mas exigiu tomar posse no Parlamento reaberto e não diante da Suprema Corte, como quer a junta. Será, ao que parece, o seu primeiro embate com os generais decididos a se perpetuar como o clássico "poder por trás do trono". Se continuarem a prevalecer, a confirmação de Morsi representará para o Egito meia página virada.