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Opinião|Migrantes e refugiados à procura da paz

Em vez de indiferença à dor do o próximo, é preciso globalizar a solidariedade

Atualização:

O número de homens, mulheres e crianças em situação de migração, em nossos dias, é estimado em cerca de 250 milhões de pessoas, das quais 22 milhões estão à procura de refúgio por situações de perseguição, discriminação ou grave risco de vida. Estamos no meio de uma migração de povos sem precedentes na história da humanidade!

Porém, diversamente das migrações dos povos bárbaros, no final do Império Romano, que geralmente se lançaram à conquista de territórios ou de quinhões valiosos de riquezas, os atuais migrantes, muitíssimo mais numerosos, estão à procura de trabalho, de sobrevivência digna e de paz.

Geralmente as pessoas não partem pelo simples gosto de migrar, mas por prementes necessidades. Na maioria dos casos, fogem de guerras, genocídios, discriminações, violências de todo tipo ou da miséria e falta de perspectivas de vida para si e para seus filhos. E arriscam a vida em viagens perigosas, com destinos incertos e dispostos a enfrentar fadigas e sofrimentos, na esperança de encontrar um lugar melhor para viver. Com frequência enfrentam questões legais e intermináveis burocracias para obter o precioso visto, antes de saírem a caminho. No fundo, o que querem mesmo é viver dignamente e em paz.

Também os países que recebem os fluxos migratórios se confrontam com realidades novas, que desafiam seu padrão de vida e o conforto alcançados. De um momento para o outro, precisam pensar em habitação, alimentação, trabalho, educação, saúde e outras coisas mais para muitas pessoas com quem não contavam. Partilhar com quem está chegando, muitas vezes em situações de grande sofrimento, é um imenso desafio à cultura do conforto e da abundância.

Com frequência, contra os migrantes são enfatizados sobretudo os riscos para a segurança nacional, ou se fazem discursos que fomentam medo, xenofobia e discriminação racial e religiosa. Essa retórica, talvez usada com fins ideológicos e políticos, passa por cima da dignidade humana e o sofrimento de quem se encontra em situação de migração e busca de refúgio.

A mensagem do papa Francisco pelo Dia Mundial da Paz, comemorado pela Igreja Católica no dia 1.° de janeiro, foi dedicada justamente ao tema dos migrantes e refugiados, “homens e mulheres à procura da paz”. Como já fez em numerosas ocasiões, o Pontífice lançou um forte apelo aos governantes e responsáveis das nações para encontrarem uma solução para as questões novas e complexas dos migrantes, que se juntam às situações persistentes e nunca suficientemente resolvidas.

Diversamente daqueles que veem nas migrações uma ameaça preocupante, o papa Francisco fala delas como uma “oportunidade para construir um futuro de paz”. Os migrantes não chegam de mãos vazias, nem trazem apenas preocupações e problemas para quem os recebe: eles também trazem a riqueza de sua cultura, de seus sonhos e a contribuição de sua força de trabalho.

Mais que tudo, porém, é preciso levar em conta o princípio básico segundo o qual todos têm o direito de viver e de usufruir os bens da terra para viver. Muitas vezes, na origem das migrações está justamente uma grave distorção desse direito básico: o mundo desenvolveu-se de maneira muito desigual e o domínio dos recursos necessários à vida está concentrado em poucas mãos. Criaram-se muitos artifícios na gestão da economia e das finanças mundiais que favorecem de maneira injusta quem já possui muito e tornam muito difícil a vida de quem dispõe de nada ou muito pouco para viver. Quando o pão se encontra por demais concentrado numa casa, é facilmente compreensível que se comece a bater à porta daquela casa para matar a fome...

Francisco convida os governantes ao discernimento para implementarem políticas migratórias adequadas, que levem em conta as necessidades dos próprios governados, mas também as de todos os membros da grande família humana. E indica quatro ações necessárias para essas políticas migratórias: acolher, proteger, promover e integrar.

Para acolher é necessário clarear e ampliar as bases legais, em vez de criar barreiras para impedir e repelir os migrantes e refugiados, cuja dignidade humana, em muitas situações extremas de fome, frio ou risco de vida requer acolhida até emergencial e proteção humanitária. É aviltante e constrangedor para a humanidade que haja migrantes, em situações de necessidade extrema, sendo humilhados, explorados como escravos ou submetidos a condições degradantes de vida. Infelizmente, essas não são coisas do passado e continuam a acontecer no século 21.

As políticas migratórias também precisam prever a promoção do desenvolvimento humano integral dos acolhidos, assegurando educação sobretudo às crianças e aos jovens; e a todos, as possibilidades de vida digna e integração social e cultural na nova comunidade. No intercâmbio dinâmico de acolhedores e acolhidos, todos saem ganhando. Mas a comunidade que acolhe certamente é a que mais se beneficia com as contribuições dos novos acolhidos. A cultura de um povo só tem a ganhar quando se abre para o intercâmbio com outras culturas.

Em 2018 estarão em discussão dois pactos globais nas Nações Unidas, referentes às migrações seguras e aos refugiados, e serão o novo quadro de referência para propostas políticas e decisões práticas no âmbito das duas questões. Também a Santa Sé contribuiu com uma série de indicações para os dois temas.

O papa deseja que esses pactos sejam animados pela abertura solidária diante do drama dos migrantes e refugiados, uma vez que toda a humanidade constitui uma única grande família, chamada a viver em harmonia na mesma casa comum. Em vez do cinismo e da indiferença diante do sofrimento do próximo, é preciso globalizar corajosamente a solidariedade. Só assim haverá verdadeira paz entre os povos.

*Cardeal-arcebispo de São Paulo

Opinião por Dom Odilo P. Scherer