Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|MPF e radiodifusão democrática

Atualização:

Nos últimos dias passei a ter esperança na possível democratização da radiodifusão no País: tomei conhecimento de que o Ministério Público Federal (MPF), com o aval do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, vai desencadear ações contra parlamentares donos de emissoras de TV e rádio. É algo que venho defendendo há muitos anos.

No Brasil, as concessões de rádio e televisão sempre foram objeto de trocas de gentilezas políticas entre o outorgante e o outorgado. A consequência dessa barganha, na maioria das vezes, é que a oposição ao governo federal fica sem voz. O cidadão brasileiro vê cassado o seu direito de ouvir todas as opiniões.

Os constituintes de 1988 elaboraram o artigo 54 da Constituição federal, que proíbe aos congressistas “firmar ou manter contrato com empresa concessionária de serviço público”. O referido artigo teve pouco resultado prático. A propósito das regalias da radiodifusão, lembro que a concessão ou permissão de serviço público é feita sempre por meio de licitação. Entretanto, no caso do rádio e da televisão prevalecem as negociações políticas. Assim foi na ditadura e persiste no pós-1985. É preciso democratizar a informação.

Vale e pena relembrar o escritor norte-americano Tim Wu. Em seu excelente livro Impérios da Comunicação (Zahar), ele comenta que, nos anos 1960, Fred Friendly acreditava que o pequeno número de emissoras de TV detinha a posse exclusiva de uma “chave geral” da livre expressão, criando “uma autocracia onde muito poucos cidadãos são mais iguais que todos os outros”.

Tim Wu diz que, baseado nessa lógica, o genial produtor, jornalista e professor norte-americano Fred Friendly “desenvolveu a ideia de que o sistema de TV a cabo poderia curar aquilo que afligia o país”. Foi quando o sistema criou conteúdos alternativos às grandes redes de televisão. Friendly dizia que antes de qualquer pergunta a respeito de liberdade de expressão se deve perguntar ‘quem controla a chave geral’.

No Brasil, a “chave geral” da livre expressão está sob a guarda de parlamentares donos de rádio e televisão.

Seis décadas atrás, a relação de amizade entre o então presidente Juscelino Kubitschek e o jornalista Assis Chateaubriand, dono dos Diários e Emissoras Associados, grupo então controlador da “chave geral” da livre expressão, foi duramente criticada pela oposição, que se queixava de não ter acesso ao rádio e à TV. Uma frase atribuída a Chateaubriand se tornou célebre e resume a força colossal que ele teve ao longo de seu reinado (1940-1965): “Se a lei é contra mim, vamos ter que mudar a lei.”

Parece-me que o exemplo deixado por Assis Chateaubriand não serviu de base para uma reflexão dos deputados e senadores, por ocasião da elaboração do artigo 223 da Constituição federal de 1988.

Passados 27 anos da promulgação da Carta Magna, os efeitos práticos desse artigo provocam controvérsias. O artigo 223 estabelece que é de competência do Poder Executivo a outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização para radiodifusão sonora e de sons e imagem.

Em 1987 e 1988 dizia-se que a pressão para manter o status quo da radiodifusão era tão grande que levou os constituintes a incluírem no texto a obrigação da apreciação do ato de outorga pelo Congresso Nacional; no caso da não renovação de outorga, a necessidade da deliberação de dois quintos do Congresso, e por votação nominal; já cancelamento de outorga somente pode ser concretizado por decisão judicial (artigo 223, § 4.º).

Dentre os defensores do envolvimento do Congresso e do Judiciário no processo, houve quem justificasse o artigo como sendo a única maneira de impedir que um presidente da República agisse de modo ditatorial, não renovando ou cancelando a outorga de uma emissora que viesse a contrariá-lo.

Já li que é permitido ao poder concedente extinguir concessões ou permissões de serviço público. A radiodifusão é exceção à regra, pois o cancelamento só pode ser efetivado por decisão judicial.

Os que temiam um presidente da República que viesse a agir de modo ditatorial se deparam hoje, na prática, com um Congresso Nacional de perfil autoritário em relação à radiodifusão. Isso porque os donos de emissoras espalhadas pelo Brasil têm presença numérica expressiva no Congresso (afronta ao artigo 54 da Constituição). Pergunto: esses parlamentares votariam a favor de uma profunda reforma da radiodifusão, que promovesse a democratização das fontes de informação?

As grandes redes nacionais de televisão têm uma força gigantesca de comunicação, já que 185 milhões de brasileiros, 90% da população, se informam pela TV. A grande audiência regional das emissoras afiliadas serve para perpetuar a presença de políticos donos de televisão e a de seus herdeiros nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional.

Seria interessante lembrar que a Constituição diz, em outras palavras, que a principal finalidade da mídia eletrônica regional é defender os anseios do povo de cada região, preservar sua cultura, seus costumes e suas tradições. É promover a inclusão social de tal maneira que nada deva ser feito sem participação dos mais pobres, que estão à margem do mercado consumidor.

A radiodifusão não pode ser um instrumento de poder político e econômico – o que contraria os ideais republicanos. A falta de espírito público do radiodifusor-político leva o radiojornalismo e o telejornalismo a uma crise ética de graves consequências: surge o risco de a verdade e a mentira serem constantemente confundidas pelos ouvintes e pelos telespectadores.

O povo e as instituições democráticas devem assumir a guarda da “chave geral” da livre expressão. Por isso louvo a iniciativa do Ministério Público Federal de defender o artigo 54 da Constituição da República.

* FRANCISCO PAES DE BARROS É RADIALISTA

Opinião por FRANCISCO PAES DE BARROS