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Opinião|Nem só de pão...

Atualização:

Estamos sofrendo a maior queda de produção jamais vista no Brasil contemporâneo, ao lado de aumento exponencial do desemprego, contração da renda das famílias e cortes nas despesas sociais da União, dos Estados e municípios. Esse é o grande desafio a ser enfrentado de cara pelo futuro governo Temer. Como disse um de seus principais colaboradores, o ex-governador Moreira Franco: “O problema maior da sociedade brasileira é a economia. O segundo maior é a economia. O terceiro maior é a economia”.

Com vista a deliberar sobre seu apoio a esse governo, o PSDB certamente enfatizará quais deveriam ser, no seu entendimento, os critérios de política econômica para enfrentar a crise. Mas há outros tópicos que serão abordados pelo partido.

Pensando no médio e no longo prazos, uma demanda, a meu ver, se sobrepõe, é anterior e superior a todas as outras: a realização de profundas reformas nas instituições políticas do País. Ao melhorar a qualidade da política e a estabilidade da democracia, tais reformas terão impacto duradouro no desempenho da economia e nas perspectivas de desenvolvimento. Não se trata de fazer tudo de uma vez, nem em curtíssimo prazo. Mas o processo deve, sim, ser deflagrado o quanto antes possível. E o apoio do chefe do Executivo poderá ser decisivo para isso.

A primeira grande reforma é implantar o parlamentarismo, espécie de cláusula pétrea do programa do PSDB, em torno da qual convergiu o núcleo fundador do partido no final da Assembleia Nacional Constituinte. O modelo de parlamentarismo que defendemos mantém a figura do presidente da República como chefe de Estado, representante da Nação no concerto mundial, comandante das Forças Armadas, intermediário nas relações entre os Poderes Executivo e Legislativo nas mudanças de governo. A ele cabe escolher o primeiro-ministro, chefe do Executivo, desde que disponha de maioria do Congresso para aprovar seu programa de governo. Quando perde essa maioria, o primeiro-ministro se demite e seu governo cai, cabendo ao presidente compor outra maioria ou, se não for possível, convocar novas eleições parlamentares.

No parlamentarismo, governos são trocados sem grandes traumas quando perdem sustentação na sociedade e, consequentemente, no Legislativo. No presidencialismo, o que deveria ser solução vira sinônimo de crise. O período pós-Constituinte mais do que confirmou o acerto dessa premissa: dos quatro presidentes eleitos desde então, um perdeu o mandato num perturbador processo de impeachment e outra está em via de perdê-lo num processo ainda mais penoso.

A segunda grande reforma é no sistema eleitoral: voto distrital para o Legislativo, que poderá ser puro nas eleições de vereador nas cidades maiores e misto, conforme o modelo alemão, para deputado estadual e federal. Esse é o caminho para aumentar a hoje baixíssima representatividade dos eleitos e baratear as caríssimas campanhas eleitorais. Pode haver algo mais irracional que um entre milhares de candidatos a deputado disputar o voto de 32 milhões de eleitores em cerca de 645 municípios num Estado como São Paulo?

Além de mais simples, barato e democrático, o sistema distrital facilita o funcionamento de um aspecto essencial do parlamentarismo: a possibilidade de dissolver a Câmara e convocar antecipadamente eleições quando não se consegue formar um governo de maioria. Essa possibilidade, diga-se, tende a tornar o voto dos parlamentares no dia a dia do Congresso muito mais responsável. A aprovação de bombas fiscais, por exemplo, pode provocar a queda do governo e trazer eleições antes da hora, hipótese que desagradaria à maioria dos deputados. Em outras palavras, a possibilidade de dissolução da Câmara enfraquece o que tenho chamado de Frente Única Contra o Erário (Fuce). Esse fenômeno, tão brasileiro, tem sido uma presença constante no nosso Congresso, onde floresce desde a época da Constituinte, juntando parlamentares de todos os partidos e de todo o espectro ideológico.

A terceira grande reforma deveria focalizar a legislação partidária. Convenhamos: é muito difícil governar um país e melhorar a qualidade da sua política com um sistema de partidos tão fragmentado e cartorial – graças à posse do tempo de propaganda gratuita na TV e aos recursos do Fundo Partidário. A mudança, no caso, requer a restrição às coligações eleitorais e o estabelecimento das chamadas cláusulas de barreira. Essas cláusulas implicam, em essência, que um partido só tenha assento na Câmara se eleger um número mínimo de representantes.

A agenda de reformas deve prever a implantação do parlamentarismo a partir das eleições de 2018. Até lá seria feita a transição para que o novo sistema funcione bem desde o início. Assim haverá tempo para discutir cuidadosamente e votar a emenda constitucional necessária. Aliás, já há várias emendas apresentadas, entre elas a do senador Aloysio Nunes, que representa um bom ponto de partida para o debate. Além disso, dever-se-ão promover de forma integral ou, quando for o caso, gradual as reformas nos sistemas eleitoral e partidário. Mudanças complementares na organização do serviço público também terão de ser promovidas. Apenas para exemplificar, num sistema parlamentarista de governo os altos cargos dos ministérios devem ser ocupados por funcionários de carreira, incluindo os secretários executivos, que são, na prática, vice-ministros.

Há quem argumente que mudanças como as propostas aqui não devem ser empreendidas em tempos de crise – crise profunda, diga-se. Eu penso exatamente o contrário. A crise atual não proveio apenas de erros na gestão da economia ou das transgressões à ética na política e no governo. Ela foi aberta, em 2013, antes dos escândalos e do colapso da economia, pelas imensas manifestações de rua em todo o Brasil, como reflexo da insatisfação com o desempenho do poder público em todos seus níveis e do fato de as pessoas não se sentirem representadas pelos mandatários eleitos. Nada mais apropriado do que enfrentar agora essas questões, começando pelo próprio sistema político. Nem só de pão vive a economia. *JOSÉ SERRA É SENADOR