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O Brasil tem remédio

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Por José Serra
3 min de leitura

O sucesso da introdução e difusão dos medicamentos genéricos no Brasil pode ser avaliado a partir de alguns números simples: são 17 mil produtos registrados, que representam 25% do total das vendas no mercado farmacêutico; seu preço médio se situa 50% abaixo do dos remédios de marca, possibilitando uma economia acumulada, nos últimos 12 anos, de R$ 22 bilhões para a população brasileira.O governo Itamar Franco chegou a emitir um decreto a respeito dos genéricos, dando destaque nas embalagens ao nome do princípio ativo dos remédios, em detrimento do nome de fantasia. Melhoral (lembram-se dele?), por exemplo, passaria a se chamar Ácido Acetilsalicílico, a Novalgina seria Dipirona. Antes disso, em 1991, o deputado Eduardo Jorge já havia apresentado projeto nessa linha, removendo o nome de fantasia. O objetivo era a redução do preço dos medicamentos, aumentando a concorrência e diminuindo o efeito da publicidade direta (quando permitida) ou da promoção de vendas por meio das amostras grátis. Mas o decreto não pegara e o projeto de lei ainda rolava no Congresso em 1998, quando assumi o Ministério da Saúde, no governo FHC.O então vice-líder do governo na Câmara, deputado Ronaldo Cezar Coelho, sugeriu que déssemos prioridade ao assunto. Estudando o tema, concluímos que a remoção do nome fantasia, por si, não daria a um medicamento a condição de genérico, ao contrário do que muitos acreditavam. Isso só ocorreria se ele fosse idêntico ao produto de marca, totalmente intercambiável. Do contrário, os médicos e os hospitais o rejeitariam. Assumimos, então, a causa e preparamos um substitutivo completo, que navegaria no Congresso a bordo do projeto original. Isso seria facilitado por Eduardo Jorge, que fora um dos grandes incentivadores de minha ida para o ministério e cooperava com todas as boas políticas de saúde, independentemente de diferenças partidárias.De acordo com o substitutivo, que virou lei, o genérico deveria passar por testes de bioequivalência e biodisponibilidade em relação ao produto de referência, tendo exatamente as mesmas eficácia, segurança, qualidade e efeito do medicamento original.A possibilidade de implantar os genéricos no País dependia da criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, cujo projeto também enviamos ao Congresso. Concebida a partir do modelo da FDA, dos EUA, ela deveria ser formada por diretores aprovados pelo Senado, técnicos e independentes. A ela caberia arrumar e revigorar todo o setor que (mal) cuidava da vigilância sanitária no Brasil.Os testes de bioequivalência e biodisponibilidade custam caro e precisam ser muito bem feitos. Por isso a Anvisa patrocinou a criação de laboratórios especializados, em universidades e instituições públicas. Mais ainda: impôs práticas rigorosas de boa fabricação de genéricos.A batalha mais visível pela implantação dos genéricos foi motivada pela resistência tanto de produtores de medicamentos "de referência" (os originais) como dos produtores de medicamentos que a lei denomina como "similares", cujos princípios ativos são os mesmo dos outros, mas não são submetidos aos exames de bioequivalência e biodisponibilidade. Não são intercambiáveis. A própria lei estabeleceu que os similares devem ser sempre identificados pelo nome comercial ou marca, não pelo princípio ativo, pois não são genéricos.A oposição inicial dos produtores de similares não se deveu a questões de preço, pois eles podiam vender até mais barato, mas ao receio de que fatias do seu mercado fossem capturadas pelos genéricos, cuja qualidade é testada. De todo modo, foi precisamente da área dos similares que saíram os primeiros empresários dispostos a fabricar genéricos, cuja expansão fortaleceu notavelmente a presença de empresas nacionais na área farmacêutica.Estudamos a fundo e aproveitamos a experiência da Inglaterra e dos EUA, onde os genéricos perfazem 60% do mercado. Atraímos investimentos de empresários da Índia e de Israel, os mais avançados nessa área. Fizemos campanhas educativas mostrando a vantagem da adoção desse tipo de medicamento. Até tarja amarela foi introduzida nas embalagens, para facilitar a identificação do produto pelos consumidores. A letra G foi-me sugerida por um passageiro anônimo durante um voo comercial para Brasília...Em janeiro de 2000, eu disse em entrevista: "Muitas empresas resistem não só a produzir, como fizeram até campanha contra. Mas quem produzir primeiro vai ganhar mais dinheiro. A concorrência acabará prevalecendo e, pouco a pouco, o volume de genéricos aumentará. Em menos de cinco anos, poderá absorver entre 30% e 40% do mercado".A previsão foi acertada, exceto quanto ao volume, pelo fato de que os genéricos perderam prioridade na política de saúde no Brasil a partir de 2003. A Anvisa foi loteada entre partidos e grupos. Até o atual governador de Brasília ganhou uma diretoria na agência, depois de ter perdido uma eleição em 2006. Nesse mesmo ano foi desfeita a equipe da agência que cuidava exclusivamente do licenciamento de genéricos. O tempo para aprovação de novos produtos foi esticado duas ou três vezes, chegando a até 18 meses, mesmo para os remédios cujas patentes expiraram e ainda não há outros genéricos no mercado. Há conjecturas de que hoje não existe o mesmo rigor na fiscalização das plantas. As campanhas do Ministério da Saúde de esclarecimento sobre os genéricos foram extintas. Isso facilita práticas ilegais de muitas farmácias, que substituem a prescrição pelo similar, e não pelo genérico.De todo modo, graças ao próprio setor privado, os genéricos se firmaram. Avançariam muito mais se o governo passasse a praticar o que está sempre a predicar: dar prioridade efetiva ao acesso da população a medicamentos essenciais, começando por reprofissionalizar a Anvisa e retornar ao ativismo pró-genéricos, visando a duplicar sua participação no consumo nacional de remédios. * EX-GOVERNADOR E EX-PREFEITO DE SÃO PAULO