Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|O cuidado da criação

A solução da questão ambiental precisa levar em conta os princípios gerais do bem comum

Atualização:

No dia 1.º de setembro, enquanto as atenções estavam voltadas para a conclusão do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, realizava-se pela segunda vez o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, a convite do papa Francisco. A iniciativa envolveu a Igreja Católica Apostólica Romana, a Igreja Ortodoxa Grega e outras igrejas e comunidades cristãs, contando com o apoio do Conselho Mundial de Igrejas.

Com o conceito de criação a linguagem cristã se refere a todos os seres deste mundo, cuja origem última é atribuída a Deus. Não vem ao caso, aqui, pôr em discussão o fenômeno da evolução das espécies, que é científico e aceito pela doutrina católica, preservado que na origem e dinâmica da existência das criaturas se reconhece a ação criadora de Deus.

Na sua mensagem para a ocasião, Francisco manifestou o desejo de que cada fiel e cada comunidade cristã assuma a sua missão de “guardiã da criação”. Convidou a louvar e agradecer a Deus pela obra maravilhosa que Ele confiou aos nossos cuidados e, ao mesmo tempo, a pedir perdão “pelos pecados cometidos contra o mundo em que vivemos”.

A iniciativa tem sua inspiração sobretudo na encíclica Laudato Si’, sobre “o cuidado da casa comum”, do papa Francisco (2015), o qual adverte que a sustentabilidade do planeta Terra, com todo o seu ambiente de vida, está sendo posta em risco pela exploração irresponsável do homem. “Deus deu-nos de presente um exuberante jardim, mas nós estamos a transformá-lo numa imensidão devastada, cheia de ruínas, desertos e lixo”, pondera o papa. E convida: não se deve ficar indiferente diante da ameaça de destruição da biodiversidade e dos ecossistemas, desencadeada em boa parte por comportamentos humanos irresponsáveis e egoístas. Em questão está a “casa comum” de todos os seres humanos e das espécies que encontram abrigo e espaço para a sua existência nesta casa comum.

Nosso planeta continua a aquecer e a perder a sua capacidade de hospedar, nutrir e proteger a vida; e as mudanças climáticas vão mostrando sempre mais as suas consequências danosas. A pergunta vem espontânea: que podemos fazer para mudar este quadro?

Os governantes dos povos, certamente, têm o grave dever de trabalhar para que se estabeleçam regras comuns e de zelar para que sejam observadas, com o objetivo de frear o aquecimento global. Mas os cidadãos de todos os países também precisam fazer a sua parte. O resultado positivo não depende apenas de ações governamentais de grande vulto e impacto. Muitas pequenas iniciativas e atitudes, acessíveis a todos os cidadãos, fazem a diferença.

A união de esforços é indispensável; muitas vezes será necessário mudar hábitos e rever práticas culturais e atividades econômicas que estejam produzindo dano ao ambiente. Todos podem zelar pelo bom uso da água, para evitar o desperdício de alimentos, pela diminuição do lixo e a melhor destinação dele, para frear os excessos do consumismo, que pressiona fortemente sobre a disponibilidade dos recursos naturais; podemos, certamente, viver de maneira mais sóbria, diminuindo o consumo desenfreado de bens supérfluos. Todos podem cuidar da limpeza de sua rua, da preservação da qualidade do ar.

A relação pouco conscienciosa com o ambiente e a sua deterioração trazem danos a nós mesmos. Mas são os pobres do mundo que acabam pagando um preço mais alto. A escassez ou falta de recursos força imensas multidões a migrar e lhes torna a vida ainda mais difícil; a lamentável situação dos refugiados é provocada, em boa parte, pelas questões ambientais e climáticas. “Os pobres do mundo, embora sejam os menos responsáveis pelas mudanças climáticas, são os mais vulneráveis e já sofrem os seus efeitos”, adverte o papa Francisco.

Por isso se faz necessário trabalhar para uma ecologia integral, em que o ser humano seja respeitado e possa conviver harmonicamente com todos os seres, levando em conta que cada criatura tem seu valor próprio. Cuidar apenas da natureza sem cuidar do homem, ou transformá-lo em inimigo da natureza, não teria sentido. Por isso o cuidado do ambiente também envolve a questão da justiça social e a superação da miséria e da pobreza. E sempre convém ter presente esta questão: que mundo queremos deixar para as crianças os aos jovens e para as futuras gerações? A solução da questão ambiental precisa levar em conta os princípios gerais do bem comum.

Talvez haja quem pergunte: que valor há em elevar as mãos para o céu e em rezar pelo cuidado da criação? Que efeitos práticos tem? A resposta é que o efeito prático nem sempre é conseguido imediatamente, mas por meio de uma mudança da consciência e das motivações que levam o homem a agir. As preces elevadas a Deus expressam o reconhecimento de que o homem não é senhor absoluto da criação e, como consequência, não a pode usar de maneira arbitrária, menos ainda expô-la ao aniquilamento. Junto com a prece se forma o respeito pela casa comum, na qual todos são dependentes de todos, e a consciência solidária. Conforme já ensinou o papa Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate, na questão ambiental está implicada a questão moral, pois as ações do homem em relação à natureza têm consequências para a própria natureza e também para as outras pessoas.

Quando o papa Francisco convida a rezar pelo cuidado da criação, está propondo algo que faz muito sentido: está a chamar para uma nova tomada de consciência e uma nova postura ética diante da questão ambiental. E isso pode levar a grandes decisões; mas pode levar, sobretudo, à prática daquela imensidade de pequenas ações que potencializam um novo cuidado da criação no espaço do cotidiano, capazes de produzir efeitos benéficos de grande significado no trato da casa comum.

Opinião por Dom Odilo P. Scherer