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Opinião|O debate inútil

Atualização:

Uma agenda de reformas só se transforma em realidade quando é encampada por uma liderança política. Situação ou oposição é um detalhe menos importante. A verdade é que a mobilização política é o único motor de mudança, principalmente quando essa mudança requer enfrentamento.

Vivemos um momento inédito de convergência em relação a essa agenda. Todos os grandes economistas brasileiros, de diferentes gerações, de bases conceituais distintas e com identificações partidárias diversas convergiram e, de forma mais ou menos loquaz, têm se manifestado a favor de um conjunto de ações que na essência é muito parecido. Apesar disso, de pouco nos terá servido o debate se não houver uma força política capaz de assumir essa agenda, defendendo-a perante a sociedade e canalizando os anseios de mudança.

Liderança política significa a necessária legitimidade do voto para enfrentar as resistências corporativistas em prol dos direitos difusos da coletividade. Liderança política também implica usar o poder da representatividade para legislar, transformando a lucidez do debate atual, a agenda convergente e a indignação popular em novo arranjo institucional.

Chegamos ao limite. Sim, o Estado tem limites – no que poucos pareciam acreditar até que os atuais indicadores econômicos (e agora também os sociais) começassem a nos bater na cara. O colapso está estampado nas manchetes dos jornais. Ao mesmo tempo, manifestações em redes sociais, motivadas por artigos desses respeitados economistas, nos invadem diariamente num clamor quase desesperado pelas reformas. É uma agenda complexa, mas hoje delineada e clara, com foco no redirecionamento do Estado e na revisão do atual modelo de governo.

São ações que corrigem grande número de distorções microeconômicas, responsáveis pelo desordenamento econômico, pela recessão e pela insustentabilidade dos avanços sociais. Mas essa agenda – que um dia já foi perdida – corre o risco de se tornar invisível. Ela está aí, é consistente e séria, mas muitos fingem não vê-la. Ninguém – além desse grupo louvável – parece querer tomá-la a si, apesar de ser esse o único caminho para finalmente tirarmos o País do atoleiro em que nos metemos.

O diagnóstico de consenso reforça o que todos já sabem: o problema brasileiro é fiscal. O Estado gasta mais do que pode, e isso de forma contínua e há muito tempo. Além do mais, gasta mal, errado e de forma ineficiente.

Legitimado pela Constituição de 1988, em que as obrigações do Estado em todas as esferas de governo foram ampliadas muito além daquilo com que o País podia arcar, esse modelo foi levado ao extremo, em particular, nos últimos anos. O descontrole do sistema previdenciário é a maior das bombas armadas, mas há vários outros desarranjos microeconômicos que se juntam – e se amplificam – provocando o atual colapso das contas públicas e causando o quadro de depressão econômica em que o Brasil mergulhou.

A partir dai, a inédita convergência prega que há que implementar um grande projeto de concertação fiscal. Isso vale desde o óbvio problema da Previdência Social até a rediscussão de outros temas delicados, como a estabilidade, a política salarial e a lei de greve dos servidores públicos; a revisão de programas sociais ineficientes; as subvenções fiscais que geraram benefícios particulares com custos coletivos elevados e as benesses excessivas – e das mais diversas ordens. A agenda se assemelha à do início dos anos 1990, com o reforço da Lei de Responsabilidade Fiscal – agora no âmbito regional, com regras fiscais subnacionais ainda mais rígidas, e uma ampla reforma na estrutura dos gastos públicos no Brasil.

Há que rever as atuais alocações e redefinir os beneficiários das políticas públicas com base em critérios de eficiência. E a primeira dificuldade está aí pois o atual modelo ajudou a forjar uma indústria do corporativismo, em que cada benefício, cada “meia-entrada”, se transformou em direito adquirido. Como contrapartida, tudo isso representa despesa pública obrigatória, perene e crescente, descolada das condições financeiras do Estado, de deveres e, pior, das necessidades reais. Todos se sentem no direito de ser em alguma medida protegidos e amparados pelo Estado – com consequências devastadoras para o equilíbrio e a sustentabilidade fiscal e custos enormes para o conjunto da sociedade brasileira.

Crise, repete-se muito atualmente, é também oportunidade. Sem dúvida, é durante a crise que ineficiências, desequilíbrios, excessos e inconsistências emergem. E é também na crise que se tem incentivos para enfrentar e corrigir esses problemas – ao menos quando se quer sair dela.

O Brasil está em crise, talvez a maior dos últimos 70 anos. Todas as crises são particulares, mas esta talvez seja a primeira em que o debate tenha convergido no diagnóstico e na agenda. Mas esse terá sido também um debate inútil se não surgir uma força política que transforme essa agenda invisível numa agenda concreta. Até porque, nas limitações estaduais, isso tem ocorrido de forma pontual. Essa, todavia, é uma agenda federal, uma agenda de Congresso Nacional.

Economistas, articulistas e formadores de opinião têm o mérito de formular propostas, incitar o debate e chamar a atenção para a necessidade de mudanças. Têm também a capacidade de fazer a sociedade entender os reais custos das escolhas que foram feitas até aqui. Mas eles não vão além disso. Meus respeitados colegas economistas não conseguirão fazer nada além de continuar esbravejando e se indignando, a não ser que haja uma liderança política que decida tomar a si essa agenda e fazê-la acontecer. Arcando com o inevitável preço político no curto prazo em troca de um futuro melhor para o nosso país e tomando as decisões difíceis para, aí sim, transformar a crise em oportunidade.

* ANA CARLA ABRÃO COSTA É DOUTORA EM ECONOMIA PELA FEA-USP, SECRETÁRIA DE FAZENDA DO ESTADO DE GOIÁS

Opinião por ANA CARLA ABRÃO COSTA