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O dedo de Deus

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Por JORNALISTA, É PROFESSOR, TITULAR DA USP, CONSULTOR, POLÍTICO, DE COMUNICAÇÃO TWITTER: GAUDTORQUATO, GAUDÊNCIO, TORQUATO, JORNALISTA, É PROFESSOR, TITULAR DA USP, CONSULTOR, POLÍTICO, DE COMUNICAÇÃO TWITTER: GAUDTORQUATO, GAUDÊNCIO e TORQUATO
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O juiz, ensinava Francis Bacon, o filósofo inglês, deve preparar seu caminho para uma justa sentença, como Deus costuma abrir o seu caminho elevando os vales e abaixando as montanhas. Perguntinha do momento: será que há juiz abrindo vias judiciárias no Brasil sem olhar para o dedo de Deus? Pelo que se lê, há. É o que se deduz da ferina declaração da ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça, ao anunciar que no Poder Judiciário há "bandidos de toga". Ela vai além com o rabisco pitoresco de que inspecionará o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, "refratário a qualquer ação do CNJ, no dia em que o sargento Garcia prender o Zorro".Ora, quem conhece a historinha de TV que se passa em San Diego, no sul da Califórnia (EUA), não tem dúvidas quanto ao desfecho. A chance de o obeso sargento Garcia, fanfarrão e bebedor de vinho, prender o inimigo Zorro, defensor do povo, chega perto de zero. A intenção da corregedora é, tudo indica, denunciar a ação corporativa patrocinada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que objetiva reduzir o poder de investigação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).Quem tem razão nessa pendenga? A questão avulta neste momento em que o País presencia agitada movimentação na esfera dos operadores do Direito. Procuradores e promotores, advogados e juízes dominam a cena, brandindo armas flamejantes na arena dos conflitos, cada qual desempenhando suas funções. São ações judiciais - processos criminais, ações civis públicas, ações diretas de inconstitucionalidade -, recursos em defesa de pessoas e grupos de interesse ou, no caso dos magistrados, decisões muito aguardadas, cujos efeitos se fazem sentir nas políticas públicas e na dinâmica das instituições.É oportuno conferir o pano de fundo. O campo da política estreita, a cada dia, a distância que mantém da seara da Justiça. Fato registrado pelos dois termos que traduzem a imbricação de suas fronteiras: a judicialização da política e a politização da Justiça. O que se convencionou chamar de "ativismo judicial" se explica por um conjunto de fatores, entre os quais se destacam o despertar da sociedade, por meio de seus núcleos organizados; a emergência de novos polos de poder; a promoção da cidadania, na esteira das bandeiras dos direitos humanos e da igualdade, responsável por movimentos como os de defesa das mulheres, de etnias e dos homossexuais; e o vácuo proporcionado pela ausência de legislação infraconstitucional (muitos dispositivos da Constituição federal de 1988 não foram regulamentados).Nesse ambiente de múltiplas interações, dentro do qual convivem instituições em processo de consolidação e uma cultura patrimonialista que subjuga a res publica ao crivo (e à ambição) do interesse privado, é difícil para o sistema judiciário tornar-se imune às pressões políticas. A partir de 1988, a Carta Magna abriu o leque das relações mais intensas. A composição das Cortes, por sua vez, tem proporcionado união mais estável entre Justiça e política.Anote-se, por exemplo, o processo de seleção de nomes para compor as listas dos tribunais superiores, encaminhadas ao chefe do Executivo, a quem cabe a palavra final. No torneio de trancas e retrancas, pressões e contrapressões, há jogadores dos partidos, de arenas corporativas (associações de classe) e de grupos, particularmente os da esfera laboral.Registre-se, ainda, que o território dos negócios adentrou muito os domínios do Estado. Portanto, a politização da Justiça, sob o prisma de indicação de nomes para as Cortes, incorpora também esse componente. Em nações desenvolvidas, como a França e a Alemanha, isso é natural. Parcela da Corte Constitucional passa pelo crivo do Parlamento. Há, ali, intenso atrelamento partidário. E nos Estados Unidos a nomeação de magistrados passa pela régua partidária, seja privilegiando democratas ou republicanos (liberais ou conservadores), dependendo do presidente do momento.Exposto o cenário da interação Justiça-política, é comum ouvir nos corredores do Judiciário coisas do tipo: "O juiz fulano é ligado ao político beltrano". E vice-versa: "O mandatário tem afinidade com o juiz tal". Até aí, tudo bem. O desenho ganha matiz mais forte, porém, quando a aproximação causa suspeita, quando se escancara a influência de atores (políticos/empresariais) nas decisões de juízes. É até provável que a complexidade do sistema judicial brasileiro dê margem a desvios, levando ainda em conta a existência de 16.108 magistrados. Os descaminhos acabam batendo às portas da Corregedoria do CNJ.E aqui entra em cena a corregedora nacional da Justiça com sua pregação: "Há bandidos de toga". Mas a entidade de classe dos magistrados quer nomes, repele a generalização. Como colocar a questão? Pincemos a célebre pergunta dos filósofos do Direito: quis custodiet custodes? Isto é, quem vigia o vigilante? Norberto Bobbio sugere a resposta ao pressupor que a indagação, por si só, aponta para um vigilante superior. Faz, porém, a ressalva: o processo deve ter limite, sob pena de descambar para o infinito.O CNJ, nesse caso, seria o vigilante das Cortes estaduais. Sob tal entendimento, o cabo de guerra é puxado para o lado da ministra Eliana Calmon. O desembargador Nelson Calandra, presidente da AMB, refuta: "A magistratura não precisa de guardas para guardar os guardas". Mas se os "guardas" (alguns) não honram o múnus, o desabafo de Calandra, é forçoso reconhecer, perde força. Poderia a própria Corregedoria do tribunal "guardar" os quadros que o integram? Ora, essa é uma de suas funções. Mas os tribunais, é sabido, não fazem controles rígidos. O modus operandi é corporativo. Não se controla a permanência dos juízes em suas localidades e nos Fóruns. Crítica geral: as Corregedorias são omissas. Processos administrativo-disciplinares, ao chegarem ao plenário, são protelados com pedidos de vista, caindo na prescrição.Querem um bom desfecho para a querela? Basta que os dois lados olhem para onde aponta o dedo de Deus.