Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O 'empoderamento desenvolvimentista'

Exclusivo para assinantes
Por Carlos Melo, Sérgio Lazzarini; cientista político, é professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). E-mail: carlos.melo@insper.edu.br; professor titular de estratégia do Insper. E-mail: sergiogl1@insper.edu.br
3 min de leitura

Afora as peculiaridades do seu estilo, a presidente Dilma Rousseff não faz um governo diametralmente oposto ao de seu antecessor e é mesmo possível que aquilo que hoje demarca sua gestão fosse levado a cabo também por Lula, estivesse ele sob as mesmas circunstâncias. Bobagem imaginar cisões e distanciamentos entre criador e criatura.O fato é que, mesmo fazendo profissão de fé à ortodoxia, Lula desde sempre manteve certo dispositivo desenvolvimentista à espreita em seu governo. Primeiro, confinado ao BNDES, depois expandido ao Ipea e à Fazenda, esse setor aguardava a hora de entrar em campo. Dilma ampliou seu espectro reforçando os Ministérios da Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento - este, com Lula, foi muito mais o Ministério do Comércio Exterior.A visão desenvolvimentista é fenômeno recorrente no País e, a rigor, não constitui novidade no cenário nacional. Para sermos justos, lembremos que também Fernando Henrique Cardoso projetara seu momento desenvolvimentista. O superministério da produção de FHC só não foi levado a cabo pelas circunstâncias: a morte de Sérgio Motta, as sucessivas crises dos mercados emergentes, o escândalo dos grampos do BNDES e as desinteligências entre PSDB, PFL e PMDB em torno da composição do poder no segundo mandato.Assim, o desenvolvimentismo dilmista não é algo exatamente novo nem extraordinário. O que o reaviva neste momento, como já se disse, são as circunstâncias.A persistente crise financeira mundial nos países desenvolvidos arrefeceu a pressão externa, presente em FHC e Lula, para que fosse seguida a cartilha ortodoxa. Não menos importante, os mercados emergentes, que antes eram problema, tornaram-se solução - para usar uma frase de Lula. São hoje os heróis do crescimento num mundo combalido por desemprego e dívida. Sob constante assédio de empresas e investidores internacionais, o mundo emergente passa a ter mais espaço para políticas distanciadas da busca irrestrita de controle inflacionário e forte disciplina fiscal.Esse novo "empoderamento desenvolvimentista" emerge, no Brasil, com algumas características importantes. No âmbito da máquina pública, o impulso, que antes se localizava nas iniciativas de formar "campeões nacionais", pelo BNDES, agora se espalha por meio de uma miríade de iniciativas articuladas pelos Ministérios da Fazenda, da Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento. Seus ministros querem cada vez mais mostrar serviço e, embora nem sempre atuem em uníssono, compartilham as mesmas críticas ao receituário ortodoxo, assim como parece ser o caso da própria presidente. Coincidência ou não, os cortes de juros pelo Banco Central vieram justamente num momento em que esse grupo se reforça.Quais seriam, então, as implicações desse processo? A tríade ministerial acima citada deve continuar ganhando mais espaço e tentando ampliar seu leque de propostas. O aumento do IPI sobre automóveis, proposto pela Fazenda, carrega bandeiras defendidas pelos outros ministros, notadamente a exigência de conteúdo nacional e maior investimento em pesquisa no País. A criação da "Embrapa da indústria", propalada pela Ciência e Tecnologia, tem ampla ressonância com a crença compartilhada de que o setor industrial é elemento central de desenvolvimento. A recente proposta do Desenvolvimento de elevar impostos de importação para compensar a depreciação do dólar bate na tecla dos efeitos adversos da "guerra cambial" - expressão cunhada pelo ministro da Fazenda. A presidente Dilma diz querer rigor no controle inflacionário, mas não vê com maus olhos medidas, como essas, que podem encarecer os produtos no Brasil e/ou aumentar gastos, contribuindo, assim, para o recrudescimento da inflação.Não se trata de negar que o Estado tenha seu papel, é óbvio que o governo há de zelar pelo emprego e pelo desenvolvimento do País. Mas, com mais pressão dos empresários, de um lado, e mais receptividade do governo, de outro, não será de estranhar que mais propostas de semelhante natureza continuem ganhando vida. Propostas e iniciativas dispersas, favorecendo setores escolhidos sem critério claro de bem-estar social.Nesse contexto, a resposta estratégica do setor empresarial torna-se evidente. Para que apontar problemas sistêmicos de infraestrutura ou clamar por uma profunda reforma tributária, se é mais fácil argumentar por mais proteção ou "medidas compensatórias"? O aumento (adiado) do IPI dos automóveis agradou ao lobby das grandes montadoras, temerosas dos novos entrantes asiáticos. O objetivo de maior foco no mercado doméstico é conveniente para empresários que não querem gastar muito tempo e esforço se aventurando na concorrida arena global. O mais lógico, para esses empresários, é abraçar o movimento desenvolvimentista e clamar por mais proteção diferenciada, ainda que à custa dos consumidores.Melhor seria, obviamente, se o governo conseguisse gerar uma agenda menos reativa a reclamações privadas e mais ativa em resolver os reais gargalos produtivos, evitando perpetuar setores com dificuldades estruturais para competir. Uma agenda que estimule, e não iniba, renovação setorial via novos entrantes - sejam eles empreendedores locais ou firmas estrangeiras.Não é isso, no entanto, o que se observa. A conjuntura dos emergentes transforma-se e abre janelas ao desenvolvimento, mas essas janelas parecem estar viradas para o quintal dos fundos, para o passado. Afinal, as circunstâncias atuais podem não perdurar e punir, no futuro, países menos criteriosos nas suas políticas industriais. Ironicamente, a frase de lorde Keynes resiste: desse jeito, "no longo prazo, estaremos todos mortos", ou, então, condenados a um eterno retorno.