Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O 'mensalão' e a dialética entre forma e conteúdo

Exclusivo para assinantes
Por Luiz Werneck Vianna

Ainda é cedo, mas marinheiros treinados em perscrutar o horizonte, instalados no cesto da gávea no maior mastro do navio, sondando as proximidades do mês de agosto, data marcada para o julgamento do processo do "mensalão" no Supremo Tribunal Federal (STF), já alardeiam mar tranquilo à frente. Há pouco, uma reunião pouco republicana entre um ex-presidente da República, um membro do STF e um ex-presidente dessa alta Corte, influente homem público, no escritório desse último, carregou os céus de nuvens sombrias, mas a sua rápida e surpreendente dissipação só veio confirmar o diagnóstico de tempo benigno para os navegantes.A previsão não deixa de ser espantosa, vistas as coisas a partir do que temos experimentado ao longo da nossa história. Desde sempre, como um habitus entranhado na cultura nacional, estivemos obedientes a uma regra não explícita que se traduziria no primado que as questões de conteúdo deveriam exercer sobre as de forma. Tal habitus - para continuar flertando com muita liberdade com categorias do sociólogo Pierre Bourdieu - como que estaria inscrito em nosso próprio corpo, convertido, pelo uso continuado, numa espécie de ideologia natural nascida das próprias condições singulares em que se teria forjado o nosso Estado-nação, em que teria cabido ao primeiro termo a criação demiúrgica do segundo.Essa particularíssima condição da nossa formação não escapou ao gênio de Euclides da Cunha, que a ela atribuiu, em texto de À margem da história, o caráter do excepcionalismo brasileiro, um país que teria nascido a partir de uma teoria política a ser, gradual e paulatinamente, internalizada pela sociedade em busca dos ideais civilizatórios do Ocidente.Na tradição dessa leitura, a construção da ordem no Estado nascente seria uma criação dos juristas imperiais, magistrados que, encarnando os desígnios das elites à testa do Estado, imporiam vertebração e o sentimento de unidade a uma sociedade entregue às suas paixões e ao particularismo dos potentados locais, tal como na demonstração clássica de José Murilo de Carvalho. O conteúdo nos viria de cima e os procedimentos formais, declarados no estatuto liberal que nos regia, deveriam ser confrontados, de um lado, com o poder discricionário dos governantes - o Direito Administrativo claramente hegemônico diante dos demais ramos do Direito - e, de outro lado, com o poder de fato das elites senhoras de terras e do sistema produtivo da época.Sob esse duplo contingenciamento, os procedimentos e as formas próprias ao estatuto político liberal deveriam ceder quando importassem ameaças de lesões ao plano da ordem que se queria impor ou mesmo se viessem a afetar interesses dos potentados locais em seus domínios patrimoniais. Sem um Poder Judiciário autônomo diante do Poder Executivo e na ausência de uma esfera pública, cuja formação efetiva somente vai germinar com as lutas abolicionistas, a modelagem discricionária do Direito Administrativo se vai comportar como o instrumento mais adequado para que o conteúdo ideado pelo vértice político procurasse suas vias de realização.Essa dialética difícil entre forma e conteúdo se vai projetar no cenário republicano, o Estado Novo tendo significado um momento de exasperação da imposição do conteúdo sobre a forma, aí não mais orientado pelos ideais civilizatórios, e, sim, pelos da modernização do País. A Carta de 1937, em seu artigo 135, comanda sem subterfúgios que a precedência "do pensamento dos interesses da Nação" deveria se impor aos interesses individuais, cabendo ao Estado a leitura e vocalização desse pensamento. Na fórmula, pois, o pensamento da Nação se substantiva, enquanto os procedimentos para sua realização são meramente instrumentais.O curso do processo de modernização subsequente, em boa parte cumprido em contexto mais amável às instituições do liberalismo político - salvo o hiato do regime militar -, preservou essas marcas congênitas à nossa formação, como no governo JK, em que se contornou o Poder Legislativo com a criação dos então chamados grupos executivos, a fim de viabilizar, pela ação discricionária da administração pública, seu programa de metas para a aceleração da industrialização do País.A Carta de 1988, ao instituir os termos da democracia política no País, deu início a uma mutação em nossa vida republicana, ainda em andamento e não de todo percebida, qual seja a que se expressa na tendência de converter o constitucionalismo democrático em novo paradigma dominante no sistema jurídico-político, afetando as antigas primazias exercidas pelo Código Civil e o poder discricionário das esferas administrativas. A emergência dessa tendência - escorada por institutos próprios, entre outros, o Ministério Público, as ações civis públicas e as de controle da constitucionalidade das leis - modera, quando não inibe, o decisionismo de nossa tradição política.Pode-se entender o assim chamado processo do "mensalão" como uma tentativa de reação anacrônica do conteúdo contra a forma, pois o que, na verdade, se intentava, embora por métodos nada republicanos, era insular a vontade política dos governantes, no suposto de que somente deles provinha a melhor interpretação dos interesses da Nação. A tentativa se frustrou, foi criminalizada e, agora, chega aos tribunais. Quanto à sorte do seu julgamento, a essa altura se trata de questão menor, confinada às artes dos especialistas em técnica jurídica, uma vez que, no que importa, a sociedade e suas instituições já demonstraram recusar aos governantes o monopólio para decidir sobre quais são os verdadeiros interesses da Nação. No mais, é como se dizia antes da invenção da ultrassonografia: nunca se sabe o que vai sair de barriga de mulher ou da cabeça de um juiz.  

PROFESSOR-PESQUISADOR , DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA (PUC) DO RIO. E-MAIL: LWERNECK096@GMAIL.COM