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Opinião|O pandemônio e o elogio da serenidade

Atualização:

Não está fácil entender o que se passa ao redor. Pelos padrões usuais na interpretação dos fatos da política isso aí que nos ronda tem algo de insondável, talvez porque esteja inextricavelmente ligado a um affaire policial, grande parte dos principais envolvidos em sua trama sujeitos a uma eventual delação premiada, terreno próprio para enigmas psicológicos estudados na teoria dos jogos. Para qual cenário deve o observador fixar sua atenção: no dos poderes políticos ou no dos tribunais?

Se salvar a pele parece ser uma estratégia comum, como avaliar as intenções – se genuinamente políticas ou devidas a cálculos do tipo dilemas do prisioneiro, frequentes em processos criminais – daqueles que têm resgatado a autonomia da vida parlamentar, ou dos que ameaçam o abandono do centro político, depois de vencedores em quatro disputas presidenciais consecutivas em amplíssimas coalizões pluripartidárias, em favor de alianças ditas de esquerda, em trânsito abrupto de uma ética de responsabilidade dos tempos Antônio Palocci-Henrique Meirelles para, presumidamente, uma de convicção? 

Se o ajuste fiscal, expressão com que se evita o estigma dos programas de austeridade europeus, é necessário – diagnóstico da oposição nos debates da campanha presidencial, que a situação, para estupefação geral, referendou logo após sua vitória eleitoral –, por que a principal liderança do PT, mentor da indicação de Joaquim Levy, membro do seu primeiro governo, para o Ministério da Fazenda, se opõe agora a ele e ao seu programa de ação? Augura-se à presidente Dilma a má sorte de, mais uma vez, se desdizer e de governar por quase quatro anos sem sustentação parlamentar e sem o apoio do partido que por duas vezes a elegeu?

Não existe, como se sabe, impeachment branco. Qual é o método dessa loucura? Trata-se de uma estratégia política sofisticada, explorando novos e mais promissores recursos no volume morto da sociedade, contrariando práticas vencedoras e até mesmo as preferências pela razão pragmática em política, tantas vezes declaradas pelo ex-presidente Lula? Ou uma simples demonstração de força a fim de dissuadir os que desejam empurrá-lo para a vala comum da Operação Lava Jato? 

Dado que o reino das intenções e dos móveis humanos, ninguém ignora, é de difícil acesso, melhor seguir Maquiavel, que nos recomenda atentar para “la verità effetuale delle cose”. De fato, não há como fugir: são dois cenários, o da política e o judicial, que se intercomunicam, embora cada qual seja animado por lógicas próprias. A aprovação da PEC da Bengala, por exemplo, dilatando o tempo de serviço dos ministros do Supremo Tribunal Federal, certamente teve como alvo retirar da presidente Dilma o poder de substituir uns cinco ministros que, no curso do seu mandato, seriam automaticamente aposentados.

A votação inesperada dessa emenda constitucional, de resto talvez necessária e absolutamente defensável, se o mundo das coisas reais importa, deve-se, como sabem as pedras da rua, menos às boas intenções que ela também abriga, e sim ao andamento da Operação Lava Jato, que assombra como o fantasma do pai de Hamlet as noites e os dias dos altos círculos do poder. Não se deve esperar processo diferente nas eleições para procurador-geral da República, ora em seus movimentos iniciais.

Se a política se tornou um lugar assombrado, em que um bilhete escrito por um prisioneiro e interceptado por seus guardiões ou eventuais palavras imprevistas e mal calculadas em depoimentos ou em acareações policiais arriscam desatar reações desastradas tanto no processo político como no judicial, já passou da hora, em defesa da nossa democracia política, a invocação da virtude da serenidade, tão bem defendida por Norberto Bobbio em brilhante ensaio com esse título.

A serenidade não como uma virtude passiva, que Bobbio reprovaria, mas ativa, no sentido de nos credenciar a avaliar à margem desses apetites desvairados por poder que nos infestam e dos ódios que envenenam a política – mesmo os dos dissimulados que, ao reprová-los, fazem cara de paisagem para as práticas delituosas que nos trouxeram ao estado de coisas que aí está –, a fim de que, tal como na teoria dos jogos, sopesemos o que já ganhamos e o que podemos perder. 

Na coluna dos ganhos, a autonomia com que têm operado as instituições republicanas, inclusive o Tribunal de Contas da União e a Polícia Federal, para não falar no derruimento da cultura bastarda que informou o nosso presidencialismo de coalizão. Não é pouco, e essa listagem está longe de ser completa. Uma política de serenidade deve nos proteger de pormos em risco a democracia política que já conquistamos a fim de, continuamente, aperfeiçoá-la.

Tudo somado, em que pese a gravidade da crise atual, ela, como se diz, pode abrir uma janela de oportunidade para a afirmação da atividade política, como se pode entrever no retorno à ribalta do tema do federalismo, calcanhar de aquiles desde o Império, do autoritarismo político entre nós, nas mudanças com que os partidos políticos já se empenham em busca de enraizamento na vida social, na reforma política, ainda em andamento no Parlamento, cujo desenlace pode ser mais feliz do que os céticos preveem. E last but not least, com a constatação de que acaba de soar o canto de cisne do capitalismo de Estado que, ora mais, ora menos, informou nosso longo processo de modernização, pavimentando o caminho para a cultura da estatolatria, que medra melhor quando se reduz a sociedade à passividade.

São transformações relevantes ao alcance da mão, se encontrarem o tempo necessário para sua maturação, que, com os auxílios da virtude da serenidade, podemos garantir. Tanto no front político ou judicial, nesse pandemônio em que nos metemos, não há bala de prata que nos livre, de um só golpe, dos males que nos afligem.

Luiz Werneck Vianna é sociólogo e dá aula na PUC-Rio

Opinião por Luiz Werneck Vianna