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Opinião|O pós-Dilma e seus gargalos jurídicos

Atualização:

Com a paralisia do processo decisório e a velocidade da deterioração econômica, o problema não é saber quanto durará a agonia da presidente da República. É, sim, avaliar as condições de governabilidade de seu sucessor – seja ele quem for. Num cenário de crescimento preocupante da dívida bruta, que pode chegar a 85% do produto interno bruto (PIB) em 2018, a dúvida é se o próximo presidente terá autoridade, força e legitimidade para superar a crise fiscal, restabelecer a confiança entre os agentes econômicos e compatibilizar fruição de direitos com equilíbrio orçamentário.

Formulada com base no princípio de que “os direitos são concedidos a todos e dever do Estado”, a Constituição avançou no plano social, mas não forjou bases materiais para sustentar um sistema público universal em matéria de previdência e saúde. Com isso, a expansão dos direitos previdenciários comprimiu os recursos destinados aos serviços essenciais, levando ao gargalo orçamentário. A redução do que os economistas chamam de gastos obrigatórios é um difícil processo de revisão de direitos. É um processo politicamente explosivo, com a agravante de que a Constituição da República incluiu o princípio do direito adquirido no seu artigo 5.º, que prevê um amplo rol de direitos individuais e coletivos. E como o artigo 60 converteu o artigo 5.º em cláusula pétrea, por consequência esses direitos teriam caráter permanente e definitivo.

Esse cenário recoloca questões já discutidas no final do século 20. Constituições têm prazo de validade? O que garante a sua longevidade? Até onde é possível reformar a Constituição sem risco de ruptura formal com os procedimentos que ela mesma estabeleceu ao definir os limites materiais de revisão de suas normas e seus princípios? Como preservá-la do desgaste do tempo, permitindo sua adequação a contextos socioeconômicos distintos dos que lhe deram origem?

Questões como essas implicam uma tensão entre o poder constituinte originário e o poder constituinte dele derivado. O primeiro estabelece uma ordem constitucional. O segundo tem a prerrogativa de alterar essa ordem conforme limites e procedimentos por ela estabelecidos. Assim, não caberia ao poder revisor, um poder constituído, afastar-se do horizonte que lhe foi imposto pelo poder constituinte originário. Se à primeira vista parecem claras, na prática essas distinções encerram dois problemas. Um é político e está associado à compatibilidade da rigidez constitucional – expressa sob a forma das cláusulas pétreas – com a própria essência da democracia. O outro problema é ético e tem implicações intergeracionais.

Em termos políticos, uma Constituição representa um limite decisório à vontade popular. Em nome da consagração de determinadas liberdades, ele impõe determinadas restrições. Promulgar uma Constituição significa impor direitos e obrigações em cada momento histórico. No âmbito político, o problema é saber até que ponto normas constitucionais relativas aos limites materiais de revisão não se traduzem em prejuízo do princípio da regra de maioria que caracteriza a democracia. Em que medida um poder constituinte originário pode impor uma vontade política ad aeternitatem? Até que ponto a limitação da liberdade de revisão prevista por cláusula pétrea não se pode revelar antidemocrática, restringindo o campo de ação de maiorias parlamentares escolhidas a cada eleição?

Desse problema político decorre o problema ético, sob a forma de um paradoxo. Na perspectiva do poder constituinte originário, a maioria que elabora, aprova e promulga uma Carta almeja um corte jurídico com o passado e pleiteia o direito de vincular o futuro. Contudo, por mais democrática que seja uma Constituição no momento de sua promulgação, é moralmente aceitável que ela possa, com seus dispositivos de irreversibilidade, bloquear a capacidade de autodeterminação das gerações vindouras? É justo que a Carta, por mais generosa que seja, possa impor compulsoriamente às gerações futuras obrigações financeiras e encargos fiscais vindos do passado? Como escapar desse paradoxo, principalmente quando a Constituição – como a brasileira – está muito marcada pela conjuntura de origem?

Uma saída polêmica, mas plausível, contrapõe a ideia do poder constituinte originário como ato unigênito e unimomentâneo à ideia de um poder constituinte evolutivo, apto a acompanhar a dinâmica da realidade socioeconômica sem subjugar as atuais gerações a determinações do passado. Essa foi a experiência portuguesa, cuja Carta de 1976, repleta de cláusulas pétreas, sofreu várias revisões. Como isso foi possível? A resposta é dada pelo jurista Vital Moreira, que, como constituinte, se empenhou para dar um caráter dirigente e ideologicamente comprometido àquela Constituição, tendo sido, anos depois, responsável por uma de suas revisões. Por um lado, diz ele, passou-se a promover uma interpretação soft das cláusulas pétreas, reduzindo-as mais à salvaguarda de princípios genéricos do que à garantia de direitos concretos assegurados por uma Constituição eminentemente conjuntural. Por outro, passou-se a admitir com maior flexibilidade a revisão dos próprios limites materiais de revisão, suavizando alguns dos limites originários, o que libertou para futuras revisões matérias que de outro modo não poderiam ser sequer alteradas. “A modéstia constituinte dificilmente fica impune e o poder constituinte evolutivo acaba por ser a sanção da imodéstia e da arrogância do poder constituinte, quando ele não é capaz de ousar acima da conjuntura da sua própria época”, disse ele certa vez.

Essa estratégia não é pacífica. Mas, se os fundamentos econômicos forem respeitados e a polarização ideológica não esvaziar o que resta de legitimidade nas atividades políticas, ela estimula a criatividade constitucional e ajuda a recuperar as noções de coordenação e planejamento há tempo perdidas.

*José Eduardo Faria é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP e FGV

Opinião por José Eduardo Faria