
O Estado de S.Paulo
14 Outubro 2011 | 03h06
Anteontem, segundo estimativas não confirmadas pelas imagens transmitidas pela TV, não passaram de 20 mil - e nada nem remotamente comparável a isso em outros pontos do País. Em São Paulo, por exemplo, apenas mil pessoas se mobilizaram para percorrer a Avenida Paulista. No Rio, cerca de 2 mil se juntaram na orla de Copacabana. O contraste com as multidões que têm ocupado as ruas no Hemisfério Norte para ventilar o seu descontentamento com os chamados poderes constituídos reforça para muitos a crença - na verdade, o estereótipo - de que o brasileiro é um acomodado. Pior ainda é a comparação com as grandes ondas cívicas da história nacional no último quarto de século: os comícios pelas Diretas Já em 1984 e as passeatas pelo impeachment do presidente Fernando Collor em 1992.
E não se diga que falta foco às atuais manifestações convocadas por intermédio das redes sociais. A bandeira do combate à corrupção se desdobra em demandas concretas, ao alcance, de resto, dos cidadãos minimamente informados. É o caso da demanda pela entrada em vigor da Lei da Ficha Limpa - ela mesma resultante de uma formidável iniciativa popular -, à espera de ser regulamentada pelo Supremo Tribunal Federal. Outra exigência, talvez ainda mais inteligível, é a do fim do voto secreto no Congresso Nacional, graças ao qual Jaqueline, filha do notório ex-governador Joaquim Roriz, se livrou da cassação por quebra de decoro. Mesmo a defesa das prerrogativas do Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle do Judiciário, pode ser explicada em poucas palavras aos distraídos.
E não se diga tampouco que faltam despertadores de consciências no País. Na celebração do Dia de Nossa Senhora Aparecida - o maior evento do catolicismo brasileiro -, a Igreja, pela voz de prelados como o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, e o de Aparecida, dom Raymundo Damasceno Assis, presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tornou a exortar os fiéis a se manifestar ativamente contra a corrupção. "Quando não somos mais capazes de reagir e nos indignar diante da corrupção", advertiu dom Odilo, "é porque nosso senso ético também ficou corrompido." Decerto a integridade do senso ético de cada qual é condição necessária para dizer "basta!" aos abusos dos poderosos de todo tipo. Mas não é suficiente.
Para surgir e se expressar, a indignação com a rapina do dinheiro público depende de condições objetivas, mais que de um imaginário "caráter nacional" acomodatício. E a primeira dessas condições, ninguém ignora, varia conforme a base material de existência da maioria do povo. Em rigorosamente todos os países onde as ruas foram tomadas nos últimos tempos, a raiz - menos ou mais exposta - da ira popular é o empobrecimento, o desemprego, a escassez de oportunidades, a penúria. No Brasil, no ano anterior ao das Diretas Já, o poder aquisitivo da população diminuíra 15% e o PIB caíra 2,8%. E a recessão provocada pelo Plano Collor pesou pelo menos tanto quanto a esbórnia da República de Alagoas para o clamor pela destituição do presidente.
Hoje, porém, a melhora sem precedentes no padrão de vida de milhões de brasileiros e a sensação geral de otimismo que daí resulta não é que anestesiem as pessoas, mas, à parte quaisquer outras considerações, não as incentivam a protestar contra a corrupção que sabem que existe - e que poderia provocar uma contundente resposta popular se estivesse associada à privação econômica.
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