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O que se evita constatar na crise de junho

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Por Oliveiros S. Ferreira
3 min de leitura

Nas manifestações ocorridas a partir de junho, observa-se que "partidos" não reclamaram a paternidade dos protestos - insiste-se no papel das redes sociais. Serviu-se desse instrumento não apenas o "Movimento Passe Livre", tanto assim que o "menos 20 centavos" foi uma entre as bandeiras que se levantaram, indicando que outros grupos reuniram quem quis manifestar sua santa ira contra o status quo. Essa multiplicidade de "convocadores" explica a ausência de um símbolo comum a todos os grupos.A primeira reação dos analistas e das reportagens aos atos de violência foi tachá-los de vandalismo. Imagens da televisão contribuíram para dar essa visão das coisas, com marginais saqueando e desaparecendo no tumulto geral. À medida, porém, que tais atos se repetiam, ficou claro que o fogo nas ruas, a destruição de vitrines e caixas eletrônicos de bancos, o incêndio de veículos e as pedras arrancadas do calçamento atiradas contra a polícia eram obra de mascarados que deixavam estampado em seu rastro o seu símbolo político, o da Anarquia (?). O fato de esse símbolo ter sentido mais amplo pouca atenção mereceu. A Bandeira Nacional presente nas manifestações pôde ser conspurcada pelo único grupo que traduzia com seu símbolo uma posição política: o dos anarquistas - contra o Estado que ela representa.Quando discutimos essas manifestações, falamos de "ordem pública". Diz o artigo 5.º da Constituição que "todos são iguais perante a lei (...) garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...". No inciso XVI do mesmo artigo 5.º se pode ler: "Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização (...) sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". Mais adiante: "Art. 5.º, XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".O constituinte preocupou-se em frisar o "sem armas", colocando-o entre vírgulas. O coquetel molotov é uma arma; assim, quem o usa não está amparado pela Constituição, mesmo quando se confunde com manifestantes pacíficos. Os que se dizem anarquistas agem como "grupo armado" e seu objetivo claramente declarado é "contra a ordem constitucional e o Estado de Direito", uma vez que se declaram dispostos a destruir a propriedade e o sistema financeiro.Os crimes "contra a ordem constitucional" não estão capitulados como tal no Código Penal. Não são crimes contra as pessoas; um bom advogado de defesa arguirá que são atentados contra o patrimônio público e privado, o que coincide com a opinião de alguns delegados. Sendo a tese vitoriosa, a "ordem constitucional" estará sem defesa, porque qualquer cidadão, mascarando-se e portando o símbolo anarquista ou a Bandeira Nacional, poderá atentar contra "a segurança e a propriedade" amparado no Código Penal, que apenas prescreve penas para os crimes contra a propriedade cometidos por criminosos comuns. Crimes esses afiançáveis e passíveis de prescrição.Esse registro permite abrir debate jurídico de grande relevância: os que praticam os crimes cometidos durante as manifestações e atentam contra a ordem constitucional têm ou não têm por objetivo "a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos...", buscando "impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados"? Se constituem "ameaça ao Estado de Direito" - e as ocupações de Câmaras Municipais são atos que "tentam impedir, com o emprego de violência", o livre exercício de qualquer dos Poderes da União e dos Estados (acrescente-se municípios) -, esses crimes, não incursos nos artigos do Código Penal, estão nos artigos 16 e 18 da Lei 7.170/83, praticamente desconhecida por se chamar "Lei de Segurança Nacional".Essas são, porém, questões para uma discussão entre especialistas, como os ministros do Supremo Tribunal Federal.Há outro aspecto da questão "ordem pública": a ameaça permanente que sobre ela paira a partir das manifestações de junho. Para o cidadão comum, a "rua" demonstrou ser capaz de fazer prefeitos cancelarem o aumento nas tarifas de transporte. A "rua" também terá levado a presidente da República a convocar o plebiscito, arrancado verba para a mobilidade urbana, obrigado a criação do programa Mais Médicos. E não foi ela que fez o Congresso Nacional sair de sua sesta permanente e votar, a toda pressa, uma série de leis?Se os movimentos que levam à ocupação de Câmaras Legislativas não impedem totalmente o trânsito e neles não se verifica a violência de nível em outros registrado, é porque não há espaço físico suficiente para ações sem risco de detenção. A questão é que anarquistas decidem quando e onde agir. A ordem pública está à mercê da decisão de uns poucos, que não são "cidadãos comuns": estão contra o Estado, acuam-no pela violência, impedindo-o de reagir, e levam o governo a temer que seja condenado pela opinião pública, seja isso o que for.A não percepção do que está de fato em jogo e a preocupação voltada apenas para os deslizes do Executivo e os malfeitos do Legislativo indicam uma fuga da discussão do problema maior: o Estado, enquanto associação coativa, tornou-se escravo da vontade dos que perturbam a ordem pública e querem alterar, pela violência, a ordem constitucional. A população devota diria: "Senhor, tende piedade de nós!" - embora esteja sabendo que muitos dos que criaram esta situação de intranquilidade usam as palavras do papa para legitimar suas atitudes...

 

* Professor da USP e da PUC-SP. É membro do Gabinete e Oficina de Livre Pensamento Estratégico. Site: www.oliveiros.com.br