Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O rumo incerto do Egito

Exclusivo para assinantes
Por Redação
2 min de leitura

Ao declarar que a transição no Egito, além de ordeira, pacífica e significativa, "deve começar já", o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, parece ter dado o equivalente a um ultimato ao ditador Hosni Mubarak para desistir da sua anunciada decisão de ficar no poder até as eleições nacionais de setembro, às quais prometeu não concorrer. Obama se pronunciou na terça-feira à noite para relatar o que teria dito ao egípcio numa conversa telefônica de meia hora, pouco antes. O telefonema se seguiu à primeira aparição de Mubarak na TV, em oito dias de crescentes manifestações pela sua destituição, culminando com o ato sem paralelo na história nacional que há de ter reunido cerca de 1 milhão de pessoas no Cairo e outras grandes cidades do país.Ocorre que, segundo as informações mais confiáveis, foi a própria Casa Branca que sugeriu ao ditador que dissesse aos egípcios, para apaziguá-los, que deixaria em setembro o cargo que ocupa há 30 anos. O mensageiro foi um ex-embaixador americano, Frank Wisner, despachado às pressas ao Cairo. Ora, até as múmias sabiam que o octogenário Mubarak, afligido por diversos problemas de saúde, não participaria de mais uma das farsas mediante às quais se eternizou no governo, com as bênçãos de Washington, e tratava de se fazer substituir pelo primogênito Gamal. Compreende-se que os Estados Unidos não podiam simplesmente aconselhar o aliado a renunciar imediatamente - mas tampouco podiam ignorar o efeito que a "concessão" provocaria junto às multidões que clamam por sua cabeça (em alguns casos, literalmente).A exortação de Obama indica que o governo da mais poderosa nação do mundo está tão perplexo como qualquer outro diante do redemoinho que, vindo da Tunísia, de onde pôs a correr um ditador havia 23 anos no poder, colheu o Egito e sobressalta os regimes pró-ocidentais, do Iêmen e da Jordânia - por enquanto. Em 2005, a então secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, em visita ao Egito, disse que durante 60 anos o seu país preferiu a estabilidade à democracia no Oriente Médio, e não obteve nem uma coisa nem outra. A rigor, até que obteve a primeira, porém ao custo de uma fermentação antiamericana que produziu a Revolução Islâmica no Irã e o terrorismo da Al-Qaeda. A massa egípcia sabe dos vínculos estreitos entre o regime de Mubarak e os Estados Unidos. Mas até ontem pelo menos não se viam bandeiras americanas ardendo nas praças do Cairo.De todo modo, uma transição que comece já, com o ditador ainda em palácio, é uma contradição em termos. Mesmo sem ele, entregue o governo ao vice-presidente nomeado dias atrás, Omar Suleiman, chefe dos temíveis serviços de inteligência do país, a mudança dificilmente será ordeira, pacífica e significativa, como quer Obama. Em 30 anos de ditadura, interesses a ela associados coagularam-se dentro e fora do vasto aparelho estatal egípcio, protegidos por um Parlamento servil - produto de eleições fraudadas -, corrupção endêmica e um permanente estado de emergência que impunha a censura e amordaçava o dissenso. Os muitos beneficiários do sistema não assistirão impassíveis ao desmanche de seus privilégios. Ainda ontem, no Cairo e em Alexandria, espocaram as primeiras, agressivas e evidentemente orquestradas manifestações pró-Mubarak.Ontem também o principal ator político egípcio, o Exército, tornou a entrar em cena. Da primeira vez, foi para avisar que não reprimiria as "legítimas aspirações" do povo. Agora, para dizer ao povo que a sua mensagem foi ouvida e assimilada, e chegou a hora de voltar ao normal. Os militares são o eixo ao redor do qual o Egito se move. Qualquer que venha a ser a democracia reivindicada nesses dias com ousadia inédita no mundo árabe, as instituições serão tuteladas pelas Armas, como acontece desde a Revolução que destronou o rei Farouk em 1952. Não é difícil prever que o país conhecerá um prolongado período de instabilidade - e que só se acentuará caso a banida Fraternidade Muçulmana resolva atrapalhar, com o seu radicalismo, a incerta construção de uma ordem política aberta.