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O trabalho de uma comissão

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Por Redação
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Se a pretensão da Comissão da Verdade era reproduzir os fatos ocorridos durante o regime militar "em sua plenitude, sem ocultamentos", como disse a presidente Dilma Rousseff ao instalá-la, há dois anos e sete meses, esse objetivo não foi atingido. Mas que ninguém se surpreenda, pois estava claro desde o princípio que todo esse processo, cujo resultado é o relatório ora entregue pela comissão, tinha o objetivo de reescrever a história daquele período conforme uma narrativa que não só ignora os crimes da esquerda armada, como a transforma em mártir da democracia - embora agisse sob inspiração (e em alguns casos com financiamento e treinamento) de ditaduras comunistas.Ao receber o relatório, a presidente Dilma Rousseff disse que era um estímulo à "reconciliação do País consigo mesmo". Mas, como o que se tem é uma versão parcial dos fatos, o resultado pode não ser a reconciliação, mas um acerto de contas. O relatório, aliás, culmina com a recomendação de que sejam suspensos alguns efeitos da Lei de Anistia para permitir a punição de agentes da repressão.A Comissão da Verdade, segundo a lei que a criou, tinha como objetivo "examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no artigo 8.º do Ato das Disposições Transitórias (1946 a 1988), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional". Não há, neste e em nenhum outro item da lei, qualquer limitação ao escopo da investigação - isto é, a apuração não deveria se restringir às violações cometidas pelos agentes do Estado.No entanto, no ano seguinte, a Comissão da Verdade - que tinha a prerrogativa de editar resoluções para solucionar "questões jurídico-administrativas relacionadas à sua atuação", como está dito em seu site - resolveu esse "problema" ao estabelecer, por meio da Resolução n.º 2, que seu objeto de análise seriam os crimes cometidos "por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado".Com isso, a Comissão da Verdade sobrepôs-se ao Congresso e legislou - com o claro propósito de contar a história do período militar a seu modo, rejeitando, por princípio, que a violência da esquerda armada fosse relatada e qualificada. Não se trata de comparar o que fizeram a guerrilha e os agentes do Estado, pois aquele era um combate obviamente assimétrico, mas não se pode ignorar que, na "guerra suja", havia dois lados - e ambos cometeram atrocidades.A escolha dos integrantes da comissão ajudou a criar a atmosfera propícia para que o trabalho fosse contaminado por interesses ideológicos. Entre os sete comissários estavam, por exemplo, uma psicanalista conhecida por sua aguerrida militância petista e uma advogada que defendeu Dilma durante a ditadura. Não eram acadêmicos preocupados com a exposição exata de acontecimentos históricos.Constituiu-se, assim, uma comissão que se arrogou o papel de tribunal da história para efetuar um julgamento que, segundo entendem seus promotores, foi indevidamente protelado pela Lei de Anistia. Por essa razão, o relatório final diz considerar que a anistia a agentes do Estado que participaram de crimes "é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional". Entendem seus autores que há "total impossibilidade de lei interna afastar a obrigação jurídica do Estado de investigar, processar e punir" essas violações, pois são crimes contra a humanidade. Nessa interpretação, o Estado brasileiro não é soberano para lidar com seus conflitos internos.Em relação a tal absurdo, o Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado em 2010, quando informou que revogar a Lei de Anistia significaria ferir cláusulas pétreas da Constituição. Ademais, convém novamente lembrar qual é o espírito daquela lei. Não se tratava de perdoar crimes, mas de deixá-los no passado, no âmbito da história, para que a transição do regime militar para a democracia se desse de forma pactuada, evitando o revanchismo que inviabilizaria a reconciliação. Não foi esse o espírito que moveu a Comissão da Verdade.