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Opinião|Os médicos, o governo e a saúde da população

Atualização:

O ano de 2014 foi particularmente difícil para a classe médica e para os cidadãos brasileiros. Aliás, essa era uma constatação de parcela expressiva da sociedade ao menos desde 2013, quando a população foi às ruas, num justo protesto, exigir maior retorno em investimentos sociais, já que nossa carga tributária é uma das mais altas do mundo e, invariavelmente, os serviços públicos oferecidos deixam muito a desejar. A saúde já despontava como a principal prioridade naquele momento. A mesma prioridade é exigida agora para o próximo mandato presidencial, conforme demonstra recente pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha a pedido da Associação Paulista de Medicina e do Conselho Federal de Medicina. Diante deste cenário, o governo federal é duramente contestado, pois a população tem ciência de que as principais dificuldades encontradas no Sistema Único de Saúde (SUS), como longas filas de espera, emergências superlotadas, falta de leitos hospitalares, falta de medicamentos, dificuldades de marcação de exames, cirurgias ou consultas com especialistas, se devem primordialmente à falta de investimentos no setor. Constata-se, infelizmente, que a saúde nunca foi tratada com a merecida atenção. Os números falam por si. Na década de 1980 a União era responsável por 75% dos investimentos em saúde pública; hoje responde apenas por 45%, ou seja, transferiu para os Estados e municípios a responsabilidade de financiar o SUS, a despeito de concentrar cada vez mais a arrecadação de impostos. A Emenda Constitucional (EC) n.º 29 foi uma tentativa de recompor os investimentos da União no setor. Essa expectativa foi frustrada pela ação da base governista, que conseguiu aprovar uma alternativa que manteve a destinação de recursos em níveis insuficientes. Várias entidades da sociedade civil elaboraram um projeto de lei de iniciativa popular, que conseguiu mais de 2 milhões de assinaturas, tentando resgatar o texto da EC 29, que lamentavelmente se encontra parado no Congresso Nacional, enquanto a população clama por uma solução imediata para o setor. Numa tentativa de oferecer satisfação à população, o governo federal, por meio de forte campanha de marketing, tentou responsabilizar os médicos pelas mazelas do SUS e criou o programa denominado Mais Médicos, introduzindo aberrações inimagináveis em nossa rede de saúde. Em poucas palavras, esse programa trouxe médicos que não se submeteram à revalidação de seus diplomas, além de colocá-los em condições de vida, de remuneração e de trabalho que ferem frontalmente os mais elementares princípios de direito e liberdade num Estado democrático. Isso foi evidenciado por aqueles poucos que conseguiram abandonar o Mais Médicos, a despeito da intensa vigilância a que eram submetidos. Outra irresponsabilidade, talvez com consequências mais funestas em médio prazo: inseriu na mesma medida provisória autorização para a abertura de mais escolas médicas e agora temos conhecimento de que 39 novos cursos de Medicina serão criados nos próximos anos, apesar da falta de docentes, de hospitais e de rede ambulatorial com vocação para o ensino. Teremos como consequência, assim, a formação de médicos mal preparados, que certamente porão em risco o atendimento à população. Por fim, propôs a abertura de mais vagas de residência, o que seria louvável se houvesse serviços preparados para oferecer boa formação especializada aos médicos recém-formados. Como estrutura adequada não se cria em curto espaço de tempo, teremos também especialistas com formação deficiente. Dessa forma, o governo sinaliza intervir no processo de formação de especialistas, que hoje é bem estruturado pelo excelente trabalho realizado pelas diversas sociedades de especialidades. Se não houver forte reação do conjunto das entidades médicas e dos cidadãos, corremos o risco de perder a prerrogativa de certificar o especialista pela Associação Médica Brasileira, o que é garantia mínima de boa formação. Na saúde suplementar convivemos ainda com os inúmeros conflitos com as operadoras de planos de saúde, que cobram caro de seus usuários, são uma fonte recordista de queixas dos pacientes e remuneram muito mal os médicos e os demais profissionais de saúde. Tem sido política do atual governo subfinanciar o SUS e estimular as pessoas a adquirirem planos de saúde, numa profunda inversão do que a população considera de fato como prioritário. É esse o cenário que enfrentamos neste último ano e continuaremos a enfrentar nos próximos, já que a atual presidente da República foi reeleita. No entanto, é nosso entendimento que a classe médica sai fortalecida após as eleições, pois fomos identificados como um dos principais polos de oposição ao atual governo e conseguimos coesão expressiva, talvez nunca vista, de nossa classe profissional, que quase de maneira unânime aprova as críticas formuladas e aqui retratadas. O momento é de importantes definições: temos um governo fragilizado pelo resultado das urnas e um Congresso Nacional parcialmente renovado, o que poderá alterar profundamente o quadro político. Por outro lado, a área de saúde, que quase não foi discutida durante as eleições, continua como prioridade da população. Precisamos pôr na ordem do dia a necessidade de encaminhar de imediato as principais lutas em prol do acesso à saúde com qualidade para toda a população e de boas condições de trabalho para os médicos e demais profissionais de saúde. As bandeiras do financiamento, da gestão responsável e competente, do investimento em atenção básica, da formação de profissionais bem qualificados, etc., devem ser retomadas já. O remédio para a saúde é a formação de um forte movimento nacional em defesa do SUS e de assistência digna aos brasileiros. *Florisval Meinão é presidente da Associação Paulista de Medicina 

Opinião por Florisval Meinão