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Opinião|Os trilhos amazônicos e a soja

Só a transparência e a sustentabilidade socioambiental salvam o grão e sua saída norte

Atualização:

Nos primeiros meses de 2017 o Brasil se chocou, mais uma vez, com o calamitoso estado de suas estradas e com o reflexo disso na competitividade econômica do País. A lama e as enormes filas de carros e caminhões atolados em algumas das rodovias federais mais importantes para o escoamento de produtos agrícolas viraram tema de reportagens em horário nobre na TV.

Essas imagens vieram num momento em que Brasil retomava a campanha pela chamada saída norte, um conjunto de sistemas de transporte que cruza o coração da Amazônia e oferece uma alternativa vantajosa ao produtor que quer exportar. Hoje, a primeira opção em Mato Grosso, o maior produtor de grãos do País, é percorrer 1.500 quilômetros de estradas para chegar aos portos do Sul e do Sudeste. Nesse modelo, o transporte rodoviário é caro e os portos são muito concorridos. A saída norte prevê que o deslocamento dos caminhões seguirá no sentido oposto a esse, pela BR-163, que liga Mato Grosso a Itaituba, no Pará, onde os grãos poderão ser transferidos para balsas e seguir rio abaixo, pelo Tapajós, até os portos exportadores ao longo do Rio Amazonas e seus afluentes. Ainda é possível que se construa uma ferrovia nesse trajeto. Como resultado do projeto se evitaria o desperdício de R$ 350 milhões – conforme mostrou reportagem do Estadão em 4 de março – e se ampliaria a competitividade da soja brasileira.

Trata-se, porém, de uma iniciativa complexa. A saída norte leva estrada, ferrovia, hidrovias e portos para a Amazônia, um bioma de riquezas e desafios enormes, caracterizado por florestas, desmatamento ilegal, grilagem de terras, povos indígenas, ribeirinhos, pescadores, extrativistas e rios cor de esmeralda, como o Tapajós, e seus botos. Essa equação única, já deu para notar, não se resolve com um edital de licitação para um projeto da ferrovia. Muito menos com operações tapa-buraco e pontes de madeira ou com o Exército pavimentando homeopaticamente a estrada. Esse modal é de uma complexidade amazônica e deve ser realizado como tal.

Um ponto que agrava essa complexidade é o fato de mais de 80% do desmatamento da Amazônia ser registrado às margens de rodovias. A própria BR-163 já teve um plano sustentável, nos idos dos anos 2000, para conciliar florestas e asfalto, mas que acabou abandonado. Algumas unidades de conservação que foram criadas naquela época para conter o avanço da fronteira agrícola são, hoje, objeto de medida provisória para sua redução. No país que se comprometeu internacionalmente a zerar o desmatamento, as unidades de conservação correm o risco de ser “descriadas”, legitimando a grilagem e o desmatamento ilegal.

Por tudo isso a saída norte, para ser respeitada e defendida, precisa de um reforço da parte do governo para as ações de controle do desmatamento, com destaque para as unidades de conservação e a implementação do Cadastro Ambiental Rural. O setor privado também precisa fazer a sua parte e reforçar seus compromissos de monitorar a cadeia e de não comprar soja, boi ou qualquer outro produto quando ele provocar desmatamento.

E a ferrovia? É uma ótima alternativa! Para a soja o custo do deslocamento ferroviário ficaria de três a cinco vezes mais barato do que pela rodovia. Além disso, a emissão de carbono para a atmosfera cairia para um quarto da atual. As emissões indiretas, causadas pela ocupação e pelo desmatamento que as estradas atraem, também deixariam de ocorrer. Esse traçado da Ferrogrão, como é chamada a ferrovia, foi cuidadosamente estudado. The Nature Conservancy (TNC), a maior organização ambiental do mundo, fez parte do seu desenho e se orgulha dessa participação, mas sabe que só isso não garante a qualidade do projeto como um todo. Um componente estruturante do território, como é uma ferrovia de mais de mil quilômetros, precisa ser tema de diálogo com a sociedade local. São os moradores que vão receber as obras, os funcionários, o aumento da demanda pelos serviços públicos, a pressão de desmatamento para alimentar quem chega, os especuladores. A capacidade de governança e de controle social sobre os compromissos dos investimentos (cerca de R$ 12 bilhões), bem como as demandas de desenvolvimento dessas famílias devem ser parte do projeto da ferrovia desde seu início.

Isso não é tudo. Há também o impacto sobre o Rio Tapajós, por onde a soja é transportada numa “quase” hidrovia, em que cada comboio carrega uma carga equivalente à de 200 carretas. Imaginem o tamanho dessas embarcações, subindo e descendo um rio do qual dependem muitos pescadores e que conta com manejo de lagos para criação de peixe-boi, praia de desova de tartarugas e população local passando, de barco, de um lado para o outro. Sem contar Alter do Chão, uma das mais belas praias de água doce do País e rota do turismo transatlântico internacional. Somam-se a isso os problemas históricos da região, como o garimpo ilegal. Todos esses fatores precisam ser conciliados. Não dá para simplesmente colocar mais um usuário nesse rio, sem ordenamento. Um plano de bacia e um comitê gestor são uma possível solução, seguindo a Lei das Águas que o Brasil aprovou na década de 1990 e os bons exemplos de comitês que inspiram esse caminho.

Em resumo, o projeto para o escoamento da produção de soja tem de ser também um projeto para a Bacia do Tapajós. Controle do desmatamento, participação social e abordagem cumulativa de impactos na escala dessa bacia são elementos prioritários e devem vir antes de qualquer leilão, porque também oferecem segurança econômica ao investimento. Num setor como o de infraestrutura, em que fatores como corrupção e falta de investimentos muitas vezes atrasam as melhorias de que o País tanto precisa, só a extrema transparência e a sustentabilidade socioambiental salvam a soja e sua saída norte. A Amazônia agradece.

* ANA CRISTINA BARROS É DIRETORA DE INFRAESTRUTURA PARA AMÉRICA LATINA DA THE NATURE CONSERVANCY