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Opinião|Os vendedores de bala de prata

Atualização:

Eleitores em tempos de cólera excitam legisladores pré-democráticos. Parlamentares dessa estirpe ganharam saliência nesta legislatura. Tarados por simplificação, farejam oportunidades para atiçar maiorias com medo e com raiva. Num país assim violento, nada seduz tanto quanto a promessa de soluções instantâneas contra o crime. Quando se provam falsas, porém, a eleição já passou, o político já se elegeu e o tempo esgarçou a memória. Responsabilidades se diluem, os problemas se agravam e o ciclo do autoengano recomeça.

Não surpreende, por isso, que o projeto de redução da maioridade penal, antiga reação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, tenha saído da gaveta. Em momentos como esse, quando o sombrio horizonte nos força a resgatar a identidade política com a que nos comprometemos em 1988, nada como dar à proposta o benefício da dúvida. Levemos a ideia a sério: que razões justificam a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos?

A principal justificativa afirma que indivíduos de 16 anos têm discernimento para entender a gravidade dos seus atos e devem sujeitar-se às mesmas sanções que os adultos. Afinal, se jovens de 16 anos podem casar-se, trabalhar e até votar, por que não se sujeitar à responsabilidade criminal? Boa pergunta, mas não responda com o fígado.

A segunda justificativa crê que a redução da maioridade penal dissuadirá adolescentes de praticarem crimes. Espera-se, assim, que tal medida reduza a criminalidade. 

Enquanto a primeira justificativa tem natureza moral e psicossocial, a segunda é de caráter causal. Não só um jovem de 16 anos mereceria ser punido como adulto, mas seríamos ainda premiados com mais segurança. As duas premissas, porém, se equivocam: a primeira, por fazer a pergunta errada; a segunda, por sonegar as evidências empíricas que demonstram o contrário – a provável piora no índice de violência. Mais um debate, portanto, que vai muito mal.

O Direito brasileiro adotou uma das respostas mais arrojadas das democracias contemporâneas para lidar com o crime de adolescentes. O ECA não supõe que um menor de 18 anos não tenha consciência de seus atos nem o libera de sanções. Tanto que possibilita até a privação de liberdade. Faz uma aposta ambiciosa na ressocialização do adolescente por entender que, em sintonia com a pesquisa científica, no seu estágio de formação a recuperação é mais provável. E ainda que governos estaduais desrespeitem o ECA de muitas maneiras, o índice de reincidência de menores que saem da Fundação Casa consegue ser quase cinco vezes menor que o de ex-detentos.

Mas por que, no aniversário de 18 anos de um indivíduo, uma mudança tão brusca de regimes jurídicos? Por que, em função do acaso de algumas horas, tamanha diferença na consequência legal? Dar tratamentos penais diferenciados por causa de uma linha temporal artificial incomoda a razão. A resposta a essa inquietação, contudo, parte de outra pergunta: qual seria a alternativa jurídica?

A alternativa seria o casuísmo judicial: como a maturidade não evolui de modo reto e linear, caberia ao juiz determinar em que categoria jurídica um indivíduo se encaixa. Um indivíduo de 15 anos poderia, eventualmente, sofrer pena mais dura que um de 20. Cada caso é um caso. Essa solução não se compatibiliza com o Estado de Direito. Para evitar o risco de arbitrária discrepância entre decisões judiciais, preferimos os parâmetros estáveis da legislação. A solução etária é imperfeita, mas as alternativas são piores.

Quem ataca o corte etário aos 18 anos com base na premissa de maturidade é incoerente ao propor como alternativa outro corte etário igualmente artificial e com os mesmos vícios. E não há nada de contraditório na disparidade entre, de um lado, o critério etário de 16 anos para a cidadania civil ou eleitoral e, de outro, o de 18 para a responsabilização penal, pois os propósitos de cada um são diversos. A suposição de maturidade do adolescente, presente em ambas, não é só o que conta.

A opinião dos que lidam com o assunto é uníssona: todos os ministros de Direitos Humanos dos governos FHC, Lula e Dilma; inúmeros ministros e ex-ministros do STF; instituições como ONU, Unicef e Unesco; organizações como a Anistia Internacional e Conectas; criminólogos, do IBCCRIM ao Núcleo de Estudos da Violência. Dias atrás, na Faculdade de Direito da USP, a sociedade civil gritou junto com toda a elite jurídica paulista.

No entanto, a política brasileira continua pródiga em vendedores de balas de prata. Que aceitemos ser seus fiéis compradores só faz escancarar nosso déficit de aprendizagem coletiva. Vendem-se balas de prata para solucionar variados assuntos da vida pública. Mas em nenhum lugar ela é tão desoladora quanto na segurança, pois manipula nosso instinto mais elementar de sobrevivência. Esse é o trágico enredo dos capítulos passados e futuros da espiral de violência brasileira. 

A bala de prata, munição certeira e infalível, existe no folclore. Serve para matar lobisomem e outros bichos imaginários. Na política criminal, temos problemas mais espinhosos e demorados para enfrentar. Permanecem tão urgentes quanto intocados. São importantes demais para ficar na mão de mercadores do medo alheio, acionistas políticos da lucrativa indústria da segurança. 

Estamo-nos deixando enganar pelo velho golpe do direito penal express, disfarce quase universal para a desfaçatez política. Resta-nos a esperança de que a voz dos que se dedicam ao assunto se faça ouvir e tenhamos humildade para escutar antes de opinar. O barbarismo penal, policial e carcerário brasileiro não só viola direitos constitucionais, ele não nos entrega uma sociedade mais segura em troca. Entrega coisa muito pior, e nos afeta a todos (ainda que desigualmente). Reduzir a maioridade penal é uma grande homenagem à nossa ignorância voluntária.

*Conrado Hübner Mendes é professor de Direito Constitucional da Facudade de Direito da USP

Opinião por Conrado Hübner Mendes