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Opinião|Patrimonialismo de longa data

Atualização:

O que é mais velho no mundo como organização política? Não há dúvida de que o Estado patrimonial, surgido ao ensejo dos grandes impérios hidráulicos da Antiguidade, na Mesopotâmia, no Antigo Egito, no Império Chinês da dinastia Chin, que unificou os antigos “Estados guerreiros”, nos arcaicos impérios pré-colombianos inca e asteca, nos califados árabes, no Império Russo, etc. Ora, a modalidade de Estado mais forte do que a sociedade surgiu justamente ali, onde grandes organizações pré-burocráticas ligadas ao controle da água se estruturaram, tendo dado ensejo aos primeiros grandes Estados despóticos de que tomou conhecimento a humanidade. Era o modelo caracterizado por Marx como “despotismo asiático”.

Foi tão poderosa a presença desses Estados hidráulicos que os dois grandes impérios ocidentais que o mundo conheceu na Antiguidade, o de Alexandre, o Grande, e o Império Romano, sofreram definitivamente a influência despótica dos patrimonialismos hidráulicos, mediante a incorporação de práticas absolutistas, tanto da parte do jovem general macedônio quanto dos césares romanos. Somente séculos depois (a partir de 1400) apareceram os Estados contratualistas, aqueles que, ao ensejo da luta de classes, deram lugar aos modernos Estados nacionais, que solidificaram a prática da representação como forma de garantir a participação dos cidadãos na res publica, mantendo clara diferenciação entre esfera pública e privada.

Max Weber denominou a primeira forma de organização política, relativa aos Estados de modalidade hidráulica, como “Estado das autoridades”, contraposta ao “Estado contratualista”, denominado por ele “Estado do povo”. Ora, a herança que chegou até nós, na América Latina, do velho despotismo ibérico pós-feudal foi a dos Estados patrimoniais, intermediada, na Península Ibérica, pelos oito séculos de dominação muçulmana, que deu ensejo a Estados mais fortes do que a sociedade na modalidade concentrada e familística de poder que vingou nos califados de Sevilla e Granada. Estes somente foram desmontados pelas monarquias espanhola e portuguesa após séculos de combate contra o invasor muçulmano, tendo os cristãos, vencedores, copiado os modelos de poder concentrado e familístico típico das organizações hidráulicas patrimonialistas. O vencido, no caso os mouros, do ângulo da gestão pública, terminou impondo o seu modelo despótico ao vencedor.

Algo semelhante, conforme destaca Wittfogel, aconteceu no oriente da ilha europeia, no Principado de Moscou, que só conseguiu ver-se livre da dominação despótica da Horda Dourada de Genghis Khan copiando os procedimentos centralizadores dos invasores asiáticos e anexando a imensa extensão dos seus territórios na Eurásia, ao ensejo da derrota definitiva dos mongóis por Ivã IV, o Terrível (que foi czar da Rússia entre 1547 e 1584).

O patrimonialismo é, portanto, fenômeno político de longa data e somente conhecendo a sua história será possível elaborar um roteiro que vise ao seu desmonte. Reza o ditado espanhol que “más sabe el diablo por viejo que por diablo”. Aplicado o princípio ao caso sobre o qual refletimos, o Estado patrimonial, este é possuidor de rotinas administrativas que potencializam as suas forças, de modo a se autoperpetuar quando surgem dificuldades. É uma espécie de DNA que preserva a essência patrimonialista, em que pesem as dificuldades que aparecerem no horizonte. Wittfogel lembra que foi o economista americano John Maurice Clark que formulou o princípio vigente nos Estados patrimoniais da “racionalidade administrativa variável”. Estes, quando postos numa situação de insegurança em decorrência da atuação de forças que ameacem a sua estabilidade, promovem reformas limitadas, dirigidas apenas a esconjurar o perigo de extinção da dominação patrimonialista. Mas uma vez desmontado o risco, as coisas voltam às antigas praxes de privatização do poder por parte da elite dominante. Era o princípio getuliano presente nos mandamentos de gestão que o velho líder são-borjense utilizava nos momentos de crise: “deixar como está para ver como é que fica” e “não fazer inimigos que não se possa converter em amigos”.

Ora, com o PT em risco de ser banido do poder está em funcionamento algo semelhante. Lula mostrou-se amplo conhecedor da dialética patrimonialista e tece as linhas do roteiro que leve à salvação, mesmo que temporária, da máquina petista. Isso dá ensejo a uma guerrilha de desgaste que não soluciona os problemas, mas possibilita uma dose de oxigênio necessária para manter as coisas como estão, mesmo que o conjunto da gestão regrida. Convenhamos que o inimigo se encontra acima: é o Estado mais forte do que a sociedade. Com Dilma ou sem Dilma, ele está bem de saúde. Mas já seria um passo à frente a saída de Dilma e do PT do poder.

Nessa longa batalha contra o Estado patrimonial, Antônio Paim lembra, na sua obra A Querela do Estatismo, que deveriam ser identificados quatro segmentos na análise do Estado patrimonial brasileiro: militares, tecnocratas, burocracia tradicional e classe política. Na época em que o mestre escrevia a sua análise (1978), os dois primeiros segmentos se contrapunham aos outros dois. A dinâmica para tirar força ao Estado patrimonial estaria ligada, portanto, a uma prevalência desses segmentos na vida política.

Hoje as coisas estão um pouco mais complexas. A primeira diferença corre por conta de algo que em 1978 não aparecia claramente: a organização da sociedade civil e a sua reação contra o estatismo vigente. Atualmente ela constitui uma quinta variável, e é por aí, a meu ver, que se deve vislumbrar o caminho para pôr limites ao reforço do Estado mais forte do que a sociedade.

* RICARDO VÉLEZRODRÍGUEZ É MEMBRO DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS DA UFJF, PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, DOCENTE DA FACULDADE ARTHUR THOMAS, EM LONDRINA (PR)/ E-MAIL: RIVE2001@GMAIL.COM

Opinião por RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ