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Opinião|Pelo choque de verdade no paraíso da mentira

O estado que nos assalta a pretexto de ‘redistribuir a renda’ faz exatamente o contrário

Atualização:

Nos primeiros dias do segundo ano do governo Temer e indo para o quarto de paralisia, o Brasil segue perdido nos falsos diagnósticos do mal que o acomete.

A última vez que os fatos que a Lava Jato investiga foram avaliados no seu devido contexto foi nas sentenças do mensalão. Desde então, tanto a imprensa quanto o Ministério Público deixaram a conspiração pelo poder de lado, focaram nos indivíduos e têm tratado tudo como se a acumulação de dinheiro fosse o fim último de toda essa roubalheira.

Se fosse verdade, disso decorreria que o Estado, benfazejo como “rousseaunianamente” é, não precisa de reforma, só precisa de limpeza. Mas o Brasil real não embarca mais nessa. Já entendeu que essa luta é pelo controle e pela preservação, não pela desmontagem do “sistema”, e tem pouco que ver com ele. E expressa o seu ceticismo com crescente indiferença. A “voz das ruas” calou-se. A “vanguarda do proletariado”, mesmo com as aposentadorias e os “direitos trabalhistas” que desempregam todo mundo menos os funcionários públicos, na berlinda, não enche uma praça de tamanho médio nem a rogo pessoal e intransferível do “maior líder da história da classe operária brasileira”.

Michel Temer e seus economistas hesitantes são os únicos que, por obra do destino, se bandearam para a causa do País real. Só que, se pusesse o foco no problema como ele, é incidiria num “sincericídio”. Assim, tenta responder ao desafio jogando nos bastidores com as armas do passado. É um esforço louvável pela persistência, mas vão. O “sistema” mostra-se imune aos venenos e manhas que ele próprio inventou.

O populismo “socializa” as migalhas da corrupção para adubar o chão em que vai plantar a sua mentira. Estamos em plena safra. Mente a esquerda, criminosamente, quando diz que o “achaquismo” trabalhista não desemprega nem há rombo na Previdência; mentem o centro e a direita, por omissão, quando pedem mais sacrifícios ao povo “para salvaguardar o seu próprio futuro”, e só, como se tudo o que estivesse em jogo fosse a questão atuarial e demográfica, que também existe.

Hoje 28% da população, 57,9 milhões de pessoas, número que corresponde ao eleitorado cativo de Lula, é diretamente sustentada pelo Estado. Recebe todo mês um cheque do seu provedor. Estatisticamente falando, toda família brasileira tem, portanto, ao menos um pé embarcado no “sistema”. Se não o seu próprio, o de alguém muito próximo que bebe na mesma fonte em que a ponta de cima da “privilegiatura” se empanturra. E isso torna fluidas todas as fronteiras e distorce todas as cadeias de cumplicidade.

A esmagadora maioria desse quarto da população, que também sabe identificar a mentira, mas tem menos meios de se dar o luxo da verdade, recebe um salário mínimo ou menos. 13,4 milhões dividem os R$ 24,7 bi do Bolsa Família. Tudo o que os 5.560 municípios sustentam, que em geral é o que o cidadão comum realmente tem, é mantido com outros magérrimos R$ 27,7 bilhões. Os Estados, vale dizer, as polícias e os professores, as duas primeiras corporações a pularem fora da reforma da Previdência, consomem R$ 106 bi. E a União, que não é Brasil, é Brasília, se empanturra com R$ 273,6 bilhões. Como as aposentadorias “deles” se dão aos 50 anos e são “reajustadas” com os aumentos dos funcionários da ativa, que somente nos Estados foram de 50% acima da inflação em dez anos, o INSS custa hoje R$ 507,8 bi. Mas não são os soldados das PMs, as professorazinhas do ensino básico, nem mesmo os “amarajalados” funcionários do rés do chão do Legislativo e do Judiciário que levam essa conta a essas alturas. O Estado que nos assalta a pretexto de “redistribuir a renda” faz exatamente o contrário. Por cima de cada uma das corporações que o controlam boia a nata dos que cavam os seus privilégios legislando em causa própria, criando falcatruas semânticas ou simplesmente empilhando fraudes em cima de fraudes, que, em geral, são eles próprios os encarregados de coibir, para fazer do céu o seu único limite.

Esse grupinho sabe exatamente o cheiro de revolução que têm os seus proventos indecentes num país que foi levado ao esgotamento, muito mais que pela outra, por esse tipo de roubalheira “legalizada”. E como não há argumento racional capaz de vender o seu peixe, trata de institucionalizar a mentira.

A imprensa e o resto do País viveram a semana retrasada inteira da troca apaixonada de insultos em torno do tema do impedimento das autoridades judiciárias para decidir sobre “feitos” de que (CPPenal, art. 252, IV) “ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado”. Mas a concessão ou não de habeas corpus é a faixa mais estreita da imensa zona de conflito em que todos vivem mergulhados. Sendo o Ministério Público, com média de aposentadorias de R$ 30 mil, o Judiciário, com R$ 29 mil, e o Legislativo, com R$ 25 mil, no País onde a média aqui fora é R$ 1,6 mil e o limite legal, R$ 5,5 mil, que chance tem a minoria interessada em justiça de não ver o seu trabalho desfeito pela maioria se a cúpula da Lava Jato não denunciar o problema como ele é, em vez de seguir com enxugamento de gelo e silêncio? Qual o jornalista, especialmente os que viveram e constituíram família no isolamento de Brasília, cujos “cônjuges, parentes, consanguíneos ou afins” não são “parte direta ou indiretamente interessada” nas prerrogativas da “privilegiatura”? Por que, ao fim de quatro anos, o tema dos supersalários, das superaposentadorias, da colonização do Estado pelas corporações e pelos caronas dessa intrincada cadeia que se alimenta do Brasil dos Miseráveis não se apossou sequer da “voz das ruas”?

Não seria porque dinheiro pouco tem sob as asas do Estado muitos e são todos um pouco cúmplices do “sistema” que a ninguém nega ao menos “um golinho”?

É um choque de verdade que está fazendo falta aqui, no paraíso da mentira. O resto acontece sozinho.

*Jornalista, escreve em www.vespeiro.com