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Piketty, Summers e a nova matriz

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Por Ilan Goldfajn
4 min de leitura

Lembro-me bem do dia em que anunciaram sua contratação no departamento. Tratava-se de um economista francês. Fiquei impressionado como ele era jovem: eu ainda cursava doutorado no MIT. Com 22 anos, ele seria professor de um dos mais respeitados departamentos de Economia do mundo. Não falava muito bem inglês, mas dominava como poucos a teoria e o economês. Acabou voltando para a França três anos depois. Passados 20 anos, o livro de Thomas Piketty - Capital no século XXI -, traduzido do francês, é a sensação do momento. Chegou a ser o mais vendido na Amazon, incluindo os livros de ficção.O interesse pelos problemas da economia mundial, entre eles a desigual distribuição de renda e riqueza no mundo, está no auge. A falta de crescimento assusta tanto no exterior quanto no Brasil. Assusta porque interrompe o sonho do progresso e da melhoria de vida. O risco é o de adotar políticas que, em vez de aliviarem os problemas, os tornem mais agudos. No Brasil, a adoção do que se denominou a "nova matriz" de política econômica possivelmente magnificou os problemas estruturais.Nos últimos tempos têm surgido teorias muito interessantes sobre a economia mundial. Vários preveem o pior. A teoria do ex-secretário do Tesouro norte-americano Larry Summers vislumbra uma estagnação secular; a de Piketty projeta uma possível concentração crescente de renda e riqueza com consequências nefastas para o capitalismo moderno. Pode bem ser o caso, mas pode também ser o reflexo da atual conjuntura, extrapolada para o futuro.Não será a primeira vez que economistas teorizam as mazelas do seu tempo e extrapolam as consequências para o futuro. Os grandes clássicos da economia são um bom exemplo. Thomas Malthus temia as consequências do crescimento populacional e a falta de alimentos para todos. David Ricardo, em 1817, vislumbrava a escassez (e a explosão do preço) das terras. Karl Marx previa o fim do capitalismo com a acumulação excessiva de capital que levasse à natural queda dos lucros ou, alternativamente, à revolta do proletariado. A miséria do começo da Revolução Industrial teve papel relevante em sua obra. O crescimento da produtividade (inclusive da terra) e o progresso tecnológico mudaram o quadro.O livro de Piketty oferece extensas séries de dados sobre distribuição de renda e riqueza no mundo. Revela, por exemplo, que os 1% mais ricos nos EUA detinham quase 50% da renda da economia em 2010, de menos de 35% entre 1940 e 1980, voltando a níveis do começo do século passado. E que boa parte da concentração advém da diferença salarial entre os altos cargos de executivos e o resto dos trabalhadores.Outra revelação mostra que a riqueza (acúmulo de ativos financeiros, imóveis, etc.) correspondia na Europa a quase sete anos de renda nacional no final do século 19, caindo para entre dois e três anos entre 1914 e 1945, pela destruição das guerras, e voltando a subir para quatro a seis anos recentemente. Alega que a riqueza de hoje se deve, em boa parte, às riquezas passadas seja por heranças (uma curiosidade: na França as heranças representam 15% do PIB, de "apenas" 5% do PIB em 1950) ou pelo fato de o retorno ao capital exceder a taxa de crescimento da economia (quando a economia cresce, indivíduos sem herança ou capital podem acumular renda e gerar uma distribuição mais equitativa).Piketty prevê que haja forças naturais na economia para mais concentração de riqueza na mão de poucos. Argumenta que a taxa de retorno do capital deve se manter alta e que a perspectiva de pouco crescimento no mundo torna o futuro ainda mais preocupante.O crescimento nos últimos anos de fato não é animador. O crescimento do PIB mundial, que já chegou a atingir 4,6% entre 2004 e 2008, recuou para 2,9% nos últimos quatro anos. E a perspectiva é de uma recuperação apenas moderada, para 3,3%, nos próximos anos. Mas há dúvidas mesmo quanto a essa recuperação moderada.Larry Summers também está preocupado com o crescimento baixo no mundo. O seu receio principal é de que a recente desaceleração seja um fenômeno mais estrutural, e não apenas conjuntural. Teme que a economia mundial esteja entrando num período longo de baixo crescimento - uma estagnação secular.Argumenta que, mesmo com juros baixos, a economia mundial não consegue se recuperar de forma vigorosa. Ainda há muitas pessoas desocupadas. O problema pode ser que a economia mundial esteja precisando de juros reais ainda mais baixos para poder crescer. Mas o piso de zero para os juros nominais torna essa tarefa mais difícil, requerendo políticas monetárias não convencionais de eficácia limitada.A razão pela qual a economia mundial precisa de juros baixos é o excesso de poupança, o fenômeno denominado de saving glut. Há uma busca por ativos e projetos que comprime a taxa de juros no mundo.É interessante que a teoria da estagnação secular se baseie no excesso de poupança que comprime o retorno do capital, enquanto a de Piketty teme o oposto: que a taxa de retorno não seja comprimida à medida que o capital for acumulado. Parece que pelo menos de um dos males não padeceremos.Não vejo como inexorável um crescimento baixo nem a concentração crescente de renda e riqueza. Sou daqueles que acreditam que a distribuição de conhecimento no mundo (por exemplo, a China adotando tecnologias ocidentais) e o crescimento da produtividade podem nos afastar novamente das previsões mais sombrias. O risco é adotar políticas que exacerbam os problemas. A implementação de políticas expansionistas não convencionais por um longo período de tempo, para lidar com a estagnação secular, pode gerar risco de bolhas. Assim como a adoção de impostos muito altos ao capital, para atingir melhor distribuição, pode desestimular o investimento e afetar o crescimento. É preciso cautela ao desenhar a "nova matriz" de políticas no mundo.*Ilan Goldfajn é economista-chefe e sócio do Itaú Unibanco.