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Opinião|Por que a imprensa ajuda a universidade

Atualização:

Uma reportagem de Isabela Palhares, publicada no Estado de sexta-feira (17/7, página A16), informou que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu que a Unicamp não pode mais pagar salários acima do teto do funcionalismo estadual, que é de R$ 21.631,05 (o teto é fixado pela remuneração do governador). A propósito, foi o Estado quem revelou, há duas semanas, que, na Unicamp, cerca de mil servidores ganham mais que o governador. A determinação do TJ-SP, noticiada na sexta, não encerra o mal-estar. O quadro é complicado, o debate judicial ainda está longe de se encerrar, mas, desde já, há um dado positivo: ao cobrir o assunto, a imprensa ajuda a universidade.

No sábado, foi a vez de o repórter Victor Vieira voltar ao tema das finanças das universidades públicas paulistas. Ele detalhou, também neste jornal (página A16), o drama aflitivo da Universidade de São Paulo (USP), forçada a rescindir contratos de obras no valor de R$ 184 milhões. Contratadas na gestão anterior, as edificações – entre elas um prédio de 16 andares no centro da cidade para acomodar unidades burocráticas e administrativas – se provaram insustentáveis. A USP não tem como pagá-las. A única solução responsável é cancelar o que pode ser cancelado (ainda que isso implique a perda do que já foi investido nesses projetos).

Outra vez, o quadro é complicado. Outra vez, é positivo que os jornalistas acompanhem a crise de perto. É positivo, sem dúvida, mas há quem discorde. Do lado de dentro da universidade, muitos olham com desconfiança o noticiário que aponta incongruências ou erros na gestão das faculdades, dos cursos, das diversas atividades universitárias. Alguns põem dois pés atrás. Acreditam que os jornais, ao levantar problemas, fortalecem o discurso contrário à causa do ensino público e gratuito.

Estão enganados, ainda que com boas intenções. Quanto mais de perto a sociedade seguir os passos da USP (e um bom modo de fazer isso é pela imprensa), melhor para a USP. Para uma instituição que não tem agendas ocultas (e a USP não as tem), que busca o bem comum, que se pauta pela lisura, pelo respeito à humanidade e que cultiva o amor ao conhecimento, a fiscalização da imprensa não é perniciosa. Ao contrário, é saudável e bem-vinda.

Basta olhar o passado para perceber que o jornalismo não tem sido ruim para a USP. Mesmo quando fala do que é muito negativo, o auxílio do jornalismo é muito positivo. Não nos esqueçamos de que a USP, ela mesma, nasceu de dentro de uma redação de jornal. Júlio de Mesquita Filho, diretor deste diário a partir do final dos anos 1920, exerceu uma liderança insubstituível – e amplamente reconhecida – para que a nossa universidade fosse criada, devidamente pública e gratuita, na década seguinte. Desde essa época, a relação entre a USP e a imprensa não se tem dado pelo enfrentamento, mas por uma teia mais complexa, mais fecunda e mais virtuosa. Imprensa e universidade resultam do mesmo projeto democrático, do mesmo impulso civilizatório. Que tenham prioridades distintas, tanto melhor. Cumprem papéis que não se confundem, e não podem prescindir uma da outra.

Agora também é assim. O foco de muitas reportagens tem sido a administração das universidades públicas. Isso não quer dizer que tudo no mundo acadêmico se reduza às quatro operações matemáticas. Discutir o manejo do dinheiro da USP não significa nivelar todas as questões ao administrativismo rasteiro. Significa apenas que, se não houver esmero, competência, efetividade e transparência na execução das quatro operações matemáticas na administração universitária, nada do que a universidade precisa ser ou precisa fazer terá viabilidade material e sustentação política.

A premência jornalística, mais do que justificada, manda um recado para a universidade, um recado na forma de pergunta: vocês estão cuidando direito dos bilhões de reais que foram confiados a vocês?

Não menosprezemos a pergunta. Os quadros da USP precisam desenvolver, e rapidamente, uma consciência mais aguda da gestão dos seus recursos e da necessidade de prestar contas ininterruptamente. Será que os funcionários e docentes encarregados de algum nível de gerência em suas unidades têm clareza sobre os custos precisos acarretados por suas decisões (ou por sua indecisão recalcitrante)? Sabem eles de onde vêm os recursos? Sabem que o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (o ICMS, de onde é extraído o orçamento das universidades paulistas) é um imposto estupidamente regressivo, que tira mais dos que recebem menos? Sabem que o ICMS arranca de uma pessoa que ganha salário mínimo 12%, em média, do que ela ganha por ano? Será que os gestores da USP têm ideia de quantas empregadas domésticas paulistas precisam trabalhar (e consumir) o ano inteiro para pagar o salário de um único professor doutor?

Essas interpelações talvez soem atrevidas, impertinentes, mas são essenciais. Os gestores das universidades públicas só saberão prestar contas de modo ativo e diligente quando entenderem na carne e na alma quanto custa, em trabalho suado, trabalho de gente humilde, cada centavo do orçamento que administram. A USP, a Unicamp e a Unesp são instituições que orgulham os paulistas. Por isso mesmo, não podem se amolar quando são chamadas a prestar contas e dar satisfações aos seus cidadãos, que as financiam – principalmente aos mais pobres, e mesmo os mais miseráveis (um morador de rua, ao beber uma dose de pinga, gera ICMS).

Uns dizem que faltam recursos à universidade. Outros, que falta autonomia. Têm sua razão, uns e outros. Mas, agora, o que mais tem feito falta é o olho do dono. O dono é a sociedade. O seu olho – que ninguém se iluda com a demagogia dos corporativistas – é a imprensa livre, ainda que os moradores de rua não leiam jornal.

*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP

Opinião por Eugênio Bucci