Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Precedente pedagógico

A celebração de um acordo de leniência, especialmente quando envolve atos de improbidade administrativa, exige a participação de vários órgãos públicos, pois ele afetará bens e interesses públicos sobre os quais não existe a competência exclusiva de um único ente público

Exclusivo para assinantes
Por Redação
2 min de leitura

Fossem os tempos atuais menos esquisitos, não seria necessário recordar que os órgãos públicos têm competências finitas. Nas atuais circunstâncias, no entanto, longe de ser uma perda de tempo, a explicação é imprescindível. E foi o que fez o Tribunal Regional Federal (TRF) da 4.ª Região na terça-feira passada, ao estabelecer um importante precedente sobre os acordos de leniência. A Justiça lembrou que o Ministério Público Federal (MPF) não tem poderes absolutos sobre os interesses do Estado.

Por unanimidade, os desembargadores da 3.ª Turma do TRF da 4.ª Região decidiram que o MPF não tem competência nem legitimidade para sozinho fazer acordos de leniência envolvendo atos de improbidade administrativa. Nesses casos, é preciso que a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) participem do acordo de leniência, pois o Ministério Público não pode dispor de patrimônio público.

O caso analisado pelo TRF da 4.ª Região refere-se a um acordo de leniência celebrado entre a Odebrecht e o MPF. O juiz de primeira instância entendeu que o pacto era válido e determinou a suspensão do bloqueio de bens da empreiteira. A União recorreu da decisão, alegando que o Ministério Público não poderia ter assinado sozinho o acordo com a Odebrecht. Em maio, o tribunal voltou a bloquear os bens, por medida liminar. Agora, o TRF da 4.ª Região apreciou o mérito do recurso, determinando que o bloqueio deve ser mantido até que a AGU e a CGU ratifiquem os termos do acordo de leniência.

A relatora do processo, desembargadora federal Vânia Hack de Almeida, reconheceu que o Ministério Público tem legitimidade para celebrar acordos de leniência. Nesse sentido, ela rejeitou a hipótese de que o acordo entre a Odebrecht e o MPF seria nulo, também por força da “proteção à confiança do negócio jurídico”.

No entanto, a celebração de acordo de leniência sem a participação da CGU e da AGU, defendeu a desembargadora, configura vício. “Persiste o interesse no bloqueio de bens, não porque o MPF não pode transacionar sobre as penas, mas porque o acordo de leniência possui vícios que precisam ser sanados para que resulte íntegra sua validade, gerando os efeitos previstos no ato negocial”, sustentou.

O MPF informou que irá recorrer da decisão do TRF da 4.ª Região. Em nota, os procuradores manifestam uma visão peculiar do Direito e de suas instituições, como se os supostos efeitos positivos do acordo tivessem a capacidade de validá-lo. “O acordo da Odebrecht, se tomado em conjunto com o da Braskem, resultou no maior acordo da espécie em termos monetários na história mundial. Foram ainda revelados milhares de crimes, em depoimentos e provas, os quais têm gerado inúmeras operações policiais e acusações criminais por corrupção em todo o Brasil”, diz a nota do MPF. As proporções do acordo de leniência com a Odebrecht só reforçam a necessidade de um pleno respeito às competências institucionais. Como se sabe, o Ministério Público não tem competência para negociações referentes ao patrimônio público.

A celebração de um acordo de leniência, especialmente quando envolve atos de improbidade administrativa, exige a participação de vários órgãos públicos, pois ele afetará bens e interesses públicos sobre os quais não existe a competência exclusiva de um único ente público. Respeitar essa complexidade é o único caminho para a segurança jurídica. A saída fácil de simplesmente ratificar os acordos já feitos, fazendo vista grossa a eventuais vícios, conduz à fragilidade jurídica e, em última análise, ao arbítrio.

Deve-se reconhecer que há ainda uma longa trajetória de consolidação da figura do acordo de leniência, ainda recente no ordenamento jurídico nacional. Justamente por isso, é de grande importância o precedente do TRF da 4.ª Região, deixando claro que o Ministério Público não pode atuar sozinho. Também ele deve estar submetido à lei.