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Opinião|Quem defenderá os nascituros?

Eles não fazem passeata, não se unem para sensibilizar entidades de direitos humanos...

Atualização:

A incessante luta das mulheres por uma sociedade em que predomine a igualdade de direitos com os homens registra avanços significativos no Ocidente. No passado, ativistas em manifestações ruidosas despiram-se da roupa íntima que mais as diferencia do homem e a queimaram nas ruas. O chamado “sexo frágil” conseguiu o direito ao voto, o ingresso expressivo em universidades e destacar-se em profissões dominadas por homens.

No Brasil, as mulheres não esmoreceram até que seus reclamos foram captados pelo legislador constituinte. A Carta Magna de 1988 reconheceu iguais em direitos o homem e a mulher, que de mera colaboradora do lar ascendeu à codireção do núcleo familiar. A partir daí, no plano infraconstitucional, as mulheres receberam proteção nos ambientes em que mais as expõem e vulneram: o trabalho e o educativo, com a criação do crime de assédio sexual; o familiar e o doméstico, com a Lei Maria da Penha, que incorporou medidas judiciais de viés protetivo, ao proibir autores de ofensas físicas, morais e outras de se aproximar de suas vítimas, com quem até construíram relações afetivas ou de parentesco.

Uma qualificadora inserida na figura do homicídio fez surgir a variante feminicídio – crime hediondo. A nova descrição do crime de estupro incluiu ao lado da já prevista conjunção carnal com grave ameaça ou violência e cuja vítima era só a mulher, os demais atos libidinosos antes considerados como crime autônomo (o revogado atentado violento ao pudor). O legislador igualou o homem à mulher como vítimas do novo crime de estupro e sem técnica nivelou em gravidade todos os atos libidinosos – o que fez de um beijo lascivo violento um estupro, com pena mínima de seis anos de reclusão em regime inicial fechado. A nova definição desse crime, somada ao trabalho de conscientização em redes sociais, que apoia e encoraja vítimas, explica o aumento do número de estupros nas estatísticas da polícia.

Ainda há que tornar efetivos e respeitados direitos conquistados, eliminando a inércia que alimenta os preconceitos arraigados no imaginário da sociedade.

Insistem as ativistas numa reivindicação que esbarra num ponto de rara sensibilidade: o direito ao aborto. Não há dúvida que o corpo da mulher a ela pertence, tanto que a autolesão não é crime. No entanto, o nascituro não é extensão da mãe, que apenas o abriga para que se desenvolva e por um dom da natureza – tão vilipendiada pelo ser humano, que tenta desafiar suas leis e a elas se sobrepor. Somente o sexo responsável pode salvaguardar a integridade física e psíquica da mulher ao evitar a gravidez indesejada – e não o aborto como conduta lícita, que banalizaria a vida.

O número de adolescentes grávidas é elevado e os nossos governantes ainda se recusam a aceitar, por incompetência ou descaso, que a prevenção, em especial em áreas públicas sensíveis, é a ação mais eficiente e menos custosa a ser percorrida pela estrada da educação – de difícil trânsito por insuficiência de investimentos. Basta ver em que resultou o mau combate ao Aedes aegypti. Políticas sociais efetivas muitas vezes não apresentam êxito integral em curto ou médio prazos, o que pode explicar a falta de vontade política para pôr em prática projetos duradouros focados na prevenção. Neste país, onde milhares de famílias vivem abaixo da linha de pobreza com proles numerosas, o planejamento familiar deveria estar na pauta do dia do Executivo nas três esferas do Poder – como um adjutório real.

O trabalho preventivo de educação, em larga escala e ampla divulgação, que torne a gravidez um ato responsável – desestímulo ao aborto – deveria ser o grande pleito. O que se vê, contudo, é o esforço pela descriminalização da conduta, defendida ferrenhamente como um direito. Enganam-se aqueles que acreditam que tornar lícito o aborto preservaria a saúde física e emocional da mulher, especialmente de jovens e desvalidas.

Fala-se do aborto como se não fosse um procedimento violento e arriscado, em especial neste país, onde erros médicos não são raros. Fala-se do aborto como um procedimento corriqueiro, simples como uma extração de dente; como se não deixasse marcas psicológicas profundas e permanentes na mulher. E mais, como se houvesse a absoluta certeza do exato momento em que o nascituro pudesse ser extirpado do ventre da mãe, sem sofrimento.

A conscientização do ato de gerar e criar um filho, suas dimensão moral e consequências, só será possível com a presença atuante do Estado, atento à saúde reprodutiva e à dignidade da mulher. E não com a descriminalização do aborto, que estimularia a proliferação de clínicas atrativas para receber, a qualquer tempo e a preços módicos, mulheres ávidas por interromper a gravidez. O SUS, que peca no quesito urgência para tratar doenças graves, lento para realizar procedimentos contraceptivos, daria conta de realizar o aborto no primeiro trimestre de gestação, como acenou em habeas corpus o ministro Luís Barroso, do STF, acompanhado no recente voto pelos ministros Rosa Weber e Edson Fachin?

Ao apreender do texto constitucional o que não contém, conseguiu o ministro Barroso interpretá-lo para considerar o aborto provocado pela gestante ou por ela consentido, ora como conduta constitucional, ora inconstitucional – a depender da idade gestacional. Em outras palavras, alterou o tipo penal desse crime – em vigor há quase 80 anos – e o tornou inconstitucional. A decisão não surpreende porque não é a primeira vez que o STF legisla em matéria penal.

O que surpreende é que justamente a mulher – secularmente oprimida pelos seguidores da “lei do mais forte” – tivesse aderido a essa mesma “lei” para subjugar nascituros. Há uma agravante nessa última situação: os frágeis embriões e fetos não integram movimentos, passeatas, redes sociais, não se unem para sensibilizar entidades de direitos humanos e jamais chegarão à ONU e ao STF... Quem defenderá os nascituros?

* MARCIA DE HOLANDA MONTENEGRO É PROCURADORA DE JUSTIÇA, COORDENOU O GRUPO DE ATUAÇÃO ESPECIAL DE CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL E A CÂMARA ESPECIALIZADA EM CRIMES PRATICADOS POR PREFEITOS, DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO