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Opinião|Questão de saúde, a saúde que cuide

Atualização:

Éno mínimo intrigante afirmar que a questão das drogas é uma questão de saúde e, ao mesmo tempo, pregar a criminalização do seu porte para uso próprio. O diagnóstico é correto, mas a solução é errada. Sendo um problema de saúde, por que não deixá-lo para a área da saúde, em vez de transferi-lo para o Direito Penal?

O modelo repressivo de combate ao uso de drogas não produziu nenhum dos efeitos almejados pela sociedade, pois não reduziu o consumo, ao contrário, o encarceramento do viciado, vigente durante anos, só redundou no aumento da criminalidade dele decorrente. Caminhou, sim, em sentido oposto aos interesses e aos anseios de todos os que não se satisfazem com soluções superficiais, enganosas e contraproducentes, mas desejam atingir o cerne do problema com uma visão realista, solidária e corajosa.

O caminho da repressão para o enfrentamento do consumo representa uma solução simplista, enganosa e contraproducente, pois afasta a contribuição de outras áreas do conhecimento humano; cria para a sociedade a ilusão de se estar inibindo o consumo e provoca efeitos nocivos para o viciado e para a própria comunidade.

A visão realista é a que aponta para todas as nuances da questão, encarando-a como algo impregnado no seio da sociedade, e não própria de um pequeno segmento dela; é solidária porque não exclui e afasta o viciado, mas o incluiu e o incorpora; e é corajosa porque desmistifica conceitos ilusórios e contesta a via punitiva, substituindo-a por condutas permanentes de atenção, cuidado e acompanhamento.

A utilização do Direito Penal para o combate ao porte de drogas começa por ferir a própria Constituição federal. Esta preserva a intimidade e a vida privada, impedindo a interferência do Estado ou do particular numa esfera que é exclusiva do indivíduo, concedendo-lhe autonomia e liberdade de opção em face das várias alternativas que a vida lhe apresenta, com respeito à sua vontade, limitada a sua ação pela lei e pelo âmbito da liberdade do outro.

Como parte dos direitos e das garantias fundamentais, a Constituição federal, em seu artigo 5.º, descreve os direitos e os deveres individuais e coletivos, apresentando no inciso X a proteção ao indivíduo: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi de felicidade extrema ao declarar que ninguém pode ser instrumentalizado, funcionalizado em nome de projetos da sociedade baseados em visão coletiva preconceituosa. Essa sábia advertência do grande humanista e magistrado constitui um alerta contra posições ideológicas e totalitárias que buscam aprisionar e manipular a vontade e a conduta individuais, que retiram do homem o seu livre-arbítrio e a sua dignidade.

Transportando a questão da conduta individual e da privacidade para o campo do Direito Penal, uma observação deve ser posta como premissa: esse ramo do Direito encontra seus limites exatamente na ação humana que não provoca dano real ou potencial a terceiros. Vale dizer, o pressuposto de legitimidade da atuação da repressão penal é a existência de uma conduta que de forma concreta ou como possibilidade atinja terceiros, pois, do contrário, ela será estranha ao Direito Penal, mesmo que tenha provocado alguma lesão ao próprio autor, porque não se pune a autolesão. O exemplo mais significativo é o da não punição de quem tenta o suicídio e não obtém êxito.

Assim, o Direito Penal deve permanecer distante da intimidade e da vida privada, que são bens jurídicos protegidos pela Constituição da República. Um dos postulados, também constitucional, que regem o direito punitivo se traduz no princípio da proporcionalidade, ou seja, o mal causado pela pena deve ser proporcional ao mal causado pelo crime. Ora, na hipótese da tentativa de suicídio e do porte de entorpecente para uso próprio, o mal causado pela conduta não ultrapassa a pessoa do suicida ou do usuário. Portanto, puni-los seria impor punição sem que tenha havido lesividade a bens alheios.

Note-se, ainda, que nem toda conduta contrária a interesses relevantes da sociedade deve ser combatida por meio da sanção penal. Assim, como exemplo, tivemos no Brasil uma inteligente campanha contra o tabaco, que se mostrou extremamente eficiente, sem que se tivesse recorrido à criminalização. Atualmente, fuma-se muito menos.

Quanto ao combate ao uso de drogas pela via da repressão, observa-se que a guerra antidrogas se mostrou, no mundo inteiro, de gritante ineficácia, pois o tráfico e o uso continuam a crescer assustadoramente, atingindo todos os recantos da Terra e todas as camadas sociais. De acordo com o Escritório sobre Drogas das Nações Unidas (UNODC), embora tenha havido acentuado aumento da repressão às drogas, houve, sim, também um grande aumento do seu uso, no mundo todo (em 2006 eram 208 milhões de usuários; em 2013, 246 milhões).

Cumpre salientar que nos países onde houve a descriminalização (dez países europeus e sete da América do Sul) o uso de entorpecentes sofreu significativa diminuição, bem como houve redução da prática de delitos ligados ao consumo. Verificou-se, ainda, diminuição dos infectados pelo vírus HIV (aids) como decorrência do vício. Por fim, foi notável nesses países o aumento da procura de tratamento médico, procura essa inibida pela ameaça de processo criminal nos países onde tal possibilidade existe.

Por derradeiro, há que realçar aspecto da maior relevância: como a lei vigente no Brasil não traz critérios para distinguir o uso do tráfico, há uma tendência a considerar traficante aquele que esteja portando drogas, mesmo que ínfimas as quantidades. Note-se que, em regra, são detidos os pertencentes às camadas menos favorecidas da sociedade. Assim, os pobres estão sendo presos e a elite continua a ser servida de drogas em bandejas de prata.

* ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA É ADVOGADO CRIMINAL