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Recuperação da decência

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Por Mauro Chaves
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Com um cinismo pragmático, típico dos que já se adaptaram à implosão de valores que ocorre neste país nos últimos tempos, um cientista político participava de uma discussão, na TV, sobre as perspectivas da sucessão presidencial, quando disse que "todas as bandeiras morais foram roubadas". Roubadas por quem, cara-pálida? Seria essa a pergunta que ninguém lhe fez. Ninguém lhe contestava - como, de resto, ninguém tem contestado em quaisquer discussões políticas - a calhorda tese da "farinha do mesmo saco", que tenta comprovar a equalização ética de todos os protagonistas, antagonistas, coadjuvantes e figurantes do cenário político-eleitoral brasileiro. É como se, descoberta a plena indiferenciação moral de todos os espécimes da fauna que habita o espaço público-político nacional, nas próximas eleições não tivesse sentido algum colocar nos discursos alguns "vetustos" conceitos "moralistas" - ilustrados por expressões obsoletas do tipo "ética na política" - ou hastear a tão desbotada quanto ingênua bandeira da recuperação da decência. Alguns se comprazem em referir traços perversos de nossa formação histórica, em que os vícios do patrimonialismo, do nepotismo, da amamentação perene nas tetas governamentais e demais aberrações socioeconômicas sempre estiveram presentes, numa nação que teve em seu berço o regime das sesmarias. É lembrada ad nauseam a passagem ridícula em que o escrivão da frota do Descobrimento pede ao rei emprego para um parente - pelo que não passaria de respeito à nossa "tradição" a escandalosa colocação de parentes, apaniguados e asseclas feita pelos que ocupam posições elevadas nos Poderes da República (Executivo, Legislativo, Judiciário e estatais). Por outro lado, o critério de avaliação da gravidade das mazelas públicas deixou de ser o grau de prejuízo causado à coletividade, a soma de recursos públicos desviados, a violência do desrespeito às normas legais (ou aos direitos humanos e sociais), passando a ser seu grau de "novidade", de frescor da notícia. Quando surgem "novos" escândalos na mídia - que às vezes são novas provas surgidas ou documentações mais precisas de fatos já denunciados, mas sobre os quais nossa Justiça paquidérmica demorou demais para obter comprovação -, fala-se logo em "matérias requentadas", como se as bandalheiras velhas merecessem tratamento preferencial (dado aos idosos) em termos de oferta de impunidade. Na verdade, tem germinado no Brasil, de forma epidêmica, uma espécie de vírus que produz a frouxidão moral nos comportamentos políticos e a generalizada complacência em relação a estes, como se já estivessem integrados aos usos e costumes tradicionais da nacionalidade. Se o que políticos faziam ou diziam há dez anos causava revolta e indignação, hoje não causa mais do que suaves reprimendas, leves muxoxos, como os dos que foram valentes caras-pintadas e viraram dóceis consciências subsidiadas (do tipo UNE). Mas é por isso mesmo que as bandeiras morais ainda não foram roubadas e terão de tremular no discurso político-eleitoral, para tentar recuperar os valores da decência na vida pública, sem temer que estes já se encontrem em estado irreversível de obsolescência. E é preciso que tremulem não para mudar o costume já arraigado nos espíritos carcomidos de patrimonialismo, que só enxergam a função pública como fonte de desfrute privado, mas para nortear toda uma juventude que passa por dolorosa escassez de valores - éticos, estéticos e, sobretudo, cívicos. O que seja decência na vida público-política deveria ser coisa simples e óbvia de entender, mas já não é bem assim. Há uma flexibilização geral no entendimento do que seja honesto e do que deixe de o ser. Para alguns, é anacrônico o sentimento de repúdio às inumeráveis formas de gasto de dinheiro público em benefício privado. Para outros, é natural o abandono do mérito e do esforço do aprendizado pelo compadrio, pelo favorecimento a grupos de cupinchas sem maiores qualificações. Para inúmeros, é digerível o uso da máquina da administração pública para finalidades apenas eleitorais, a contratação de funcionários fantasmas, o repasse de verbas a ONGs pertencentes a apaniguados fichados, o desvio criminoso de dinheiro arrecadado de milhares de famílias cooperativadas para a locupletação pessoal de dirigentes partidários ou o apoio nauseante a ditadores sem nenhum respeito pelos direitos humanos. Tudo isso é palatável, engolível, escamoteável e esquecível, quando as coisas "econômicas" parece que vão bem, em razão de um senso crítico amortecido pelo estardalhaço da propaganda oficial e por um culto à personalidade - e à mediocridade - que jamais atingiu níveis tão elevados na história política deste país, em que nunca houve escassez de demagogos. Mas ainda não foram roubadas todas as nossas "bandeiras morais" e é possível mostrar à sociedade que mais importante do que a recuperação econômica, os níveis do salário mínimo e do próprio emprego é a recuperação da decência, visto que sem esta não haverá respeito a direitos, a relações humanas e à vida - valores cuja preservação constitui o desejo "normal" da esmagadora maioria da população brasileira. P. S. 1 - Comparar dissidentes políticos presos numa ditadura a bandidos presos numa democracia espanta o mundo por revelar, mais que ignorância histórica, uma fraude essencial de caráter. P. S. 2 - Diferença entre dois partidos quanto às bandalheiras praticadas por seus quadros? Simples: num é crime e castigo - dá expulsão. Noutro é crime e nem ligo - dá reeleição. Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net (www.artestudiomaurochaves.wordpress.com)