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Remédios contra a ''amnésia eleitoral''

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Por Gaudêncio Torquato
3 min de leitura

Um mês depois do pleito de 31 de outubro, um em cada cinco eleitores já não se lembrava em quem votou para deputado estadual, federal e senador. O dado de pesquisa encomendada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pode até surpreender, mas é apenas o primeiro estágio de uma "amnésia" que, quatro anos após o voto dado, deixa esquecidos cerca de 70% a 80% dos eleitores. Isto é, na eleição seguinte, sete entre dez eleitores já não se lembram em quem votaram na anterior. O apagão mental sobre os escolhidos para representar o povo e os entes federativos junto às instituições legislativas revela o baixo grau de conscientização da sociedade. E escancara a distância que separa o povo da esfera política, apesar da sensação de que cada brasileiro priva de certo conhecimento e amizade com um ou mais políticos. A impressão de proximidade entre eleitor e agente político não se traduz, porém, em compromisso sólido e duradouro entre eles. Mesmo entre votantes de comunidades distritais - municípios menores -, onde o político costuma fixar raízes profundas, a disputa entre competidores acaba corroendo as lealdades tradicionais.Não é apenas a intensa campanha, povoada de candidatos e siglas, que contribui para apagar seu nome dos mapas cognitivos. Os brasileiros, há muito tempo, estão mudando de endereço. A população urbana soma hoje 84,35%, ante apenas 15,65% da população rural. Os desafios da vida nas cidades - a partir da precária estrutura de serviços públicos - projetam sobre a população novas demandas e atitudes e valores diferentes do passado. Nas metrópoles, os conglomerados aboletados nas periferias vivem dentro de efervescente caldeirão de pressões. Os sistemas de atendimento social são administrados pelos braços dos Poderes Executivos, que se transformam, assim, em polos centrais de atenção. Isso explica o fato de que os eleitores guardam mais na lembrança as figuras do presidente e do governador que de parlamentares. De acordo com a pesquisa do TSE, 89,7% dos votantes recordam-se do candidato à Presidência e 80,6%, do candidato ao governo estadual. Trata-se da prevalência das campanhas majoritárias sobre as proporcionais. Aquelas, com número reduzido de pleiteantes, maciças e de grande visibilidade, fazem sombra sobre estas, pulverizadas com muitas caras e múltiplas siglas. O sistema proporcional, como se sabe, faz uma eleição dispersa, muito cara e desigual. Fosse o voto distrital e em lista partidária, seria maior a proximidade entre candidato e eleitor, com campanha mais clara e escolha mais fácil.A eleição conjunta de deputados, senadores, governadores e presidente da República embaralha o discurso, fazendo chegar à cachola do eleitor uma algaravia pasteurizada, sem cor e cheiro, de matizes difíceis de ser entendidos. A seleção de candidatos nessa barafunda, regra geral, obedece a critérios de conhecimento e proximidade com os nomes, o que eleva os candidatos majoritários ao pedestal mais elevado. A régua democrática, por conseguinte, aconselharia pleitos distintos tanto para Senado, governos estaduais e Presidência da República como para as câmaras legislativas (estadual e federal).Tal divisão teria ainda o condão de esclarecer às massas as reais funções dos representantes dos Estados (o papel do senador) e as obrigações dos representantes do povo (deputados estaduais e federais). Mais de 80% dos eleitores não sabem distinguir entre uns e outros. A voz comum é a de que os políticos são (ou deveriam ser), sem distinção, "despachantes do povo", com a obrigação de prover todo tipo de demanda, a partir das mais comezinhas, como arrumar emprego, contribuir com um adjutório aqui, uma benesse ali, principalmente para os mais carentes.O enxugamento dos partidos é outro remédio para oxigenar o corpo político. Os 28 partidos em funcionamento, com sua dispersão, impedem a cristalização de ideários. Cinco ou seis grandes partidos seriam suficientes para oferecer ao eleitorado uma bandeja completa de propostas, compromissos e intenções a serem cumpridos nas legislaturas e nos governos. Definidos ciclos eleitorais específicos para os campos majoritário e proporcional, mudado o sistema de voto, restringido o número de siglas, diminuiria a distância entre sociedade e esfera política? Seguramente. Outros parafusos da engrenagem também devem ser apertados. A migração partidária precisa fechar seus portões. Não se defende, aqui, o engessamento eterno do político ao partido, mas a obrigatoriedade de permanecer na casa que o abrigou até o instante em que divergências doutrinárias - entre eles, pessoas físicas, e jurídicas, os partidos - justificarem a saída. Para tanto os entes partidários carecem de uma doutrina densa, clara e de fácil assimilação pelo povo. Quem se elegeu para defender uma abordagem especial e integrante do escopo partidário em áreas como saúde, segurança, educação, transportes públicos deve ter liberdade para tomar outro rumo quando a sigla se desvia do traçado original.A tênue linha que separa oposição de situação também obscurece a decisão racional do eleitor. Os conflitos entre partidos hoje se desenvolvem em torno da meta - o poder pelo poder -, em vez da luta por defesa de políticas de Estado e métodos de ação do governo. Sob este destrambelhado desenho, a adjetivação árida, ancorada em pleonasmos acusatórios, acaba esmaecendo os substantivos. Perfis individuais tomam lugar das ideias. Fulanos e sicranos emergem à cena, sob o desvanecimento da significação de seus ciclos. Por último, confunde-se o papel de entidades organizadas da sociedade civil. Que não é o de substituir a política partidária, mas de estabelecer a intermediação dos núcleos organizados, levando suas demandas à esfera política. Se a sociedade política fosse emoldurada por esse enredo, cada ator no palco teria, nas peças eleitorais, seu nome lembrado em prosa e verso. Com direito, claro, a aplausos e apupos.JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO