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Opinião|Resgate do trabalho escravo

O arbítrio e a ideologia não podem tomar o lugar de um verdadeiro processo judicial

Atualização:

Palavras iludem, palavras esclarecem. Palavras produzem concórdia, palavras produzem discórdia. Tudo depende do significado que a elas atribuímos e do propósito que almejamos.

A recente portaria do Ministério do Trabalho relativa a maior precisão na definição do trabalho escravo é um exemplo de como uma discussão que deveria ser técnica se vê eivada de tergiversações ideológicas. Para alguns, que se caracterizam pela má-fé, o presidente Michel Temer e o seu ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, procurariam restabelecer o trabalho escravo no País, quando, na verdade, visam a combatê-lo com armas precisas, dentre as quais o significado mesmo das palavras.

A imprecisão da legislação a respeito, assim como sua utilização fizeram com que tenham sido poucas as pessoas efetivamente condenadas e presas pelo que se considera trabalho análogo a escravo. Se a atual legislação fosse eficiente, se os auditores, fiscais, promotores e juízes do Trabalho tivessem feito verdadeiramente o seu trabalho, seriam muitos, provavelmente, os que se encontrariam atrás das grades.

Em vez disso, temos uma campanha midiática concernente a empresas que supostamente estariam utilizando trabalho escravo, vindo a fazer parte de uma “lista suja” do Ministério do Trabalho. Lá são obrigadas a ficar dois anos, sem acesso a créditos públicos, mesmo que tenham sanado eventuais falhas assinaladas. São “condenadas” e punidas, embora sem passarem por um verdadeiro processo judicial.

Quando se fala em resgate de trabalho escravo, pensa-se em pessoas que teriam sido resgatadas do que se poderia considerar como uma espécie de escravidão moderna. Pode isso ocorrer ou não, dependendo dos casos. O que não pode é o arbítrio tomar o lugar de um verdadeiro julgamento. Ora, é o que acontece quando o conceito de trabalho análogo a escravo é definido em termos de trabalho degradante. Vejamos alguns exemplos.

Em abril de 2011, na cidade de Campinas, uma empresa sofreu um auto de infração por ter deixado “de dotar os chuveiros de suporte para sabonete e cabide para toalha”. Foi lavrado um documento constatando “condições degradantes a que foram submetidos os trabalhadores da empresa, que culminou com o resgate de 63 deles para as cidades de origem”. Ou seja, “condições degradantes”, incluídas na definição de trabalho escravo, são consideradas em termos de ausência de suporte para sabonete e toalha, resultando no desemprego de 63 pessoas devolvidas a seus lugares de origem. Em nome da defesa do trabalho “digno”, foram desempregadas!

Em outro auto de infração, a empresa teria deixado de “providenciar para que os locais destinados aos extintores de incêndio tivessem sido assinalados por um círculo vermelho ou por uma seta larga, vermelha, com bordas amarelas”. Note-se que uma mera ilicitude trabalhista, facilmente sanável, é identificada com “condições degradantes” a que os empregados teriam sido submetidos. Novamente o mesmo linguajar, segundo o qual os trabalhadores teriam sido “resgatados” e retornados a suas cidades de origem. O que pode bem significar resgate, palavra associada a uma operação especial destinada a liberar pessoas de uma situação de servidão ou de degradação física? Se esse fosse o caso, tratar-se-ia de uma missão impossível, por falta completa de objeto.

Outros exemplos poderiam ser dados no que diz respeito a “condições degradantes” e “jornada exaustiva”, tornando inviáveis tanto empresas quanto o emprego de pessoas. Uma legislação mais precisa permitiria diferenciar o que é próprio a ilícitos trabalhistas, puníveis com as multas correspondentes, do que seria o efetivo trabalho escravo, com cerceamento da liberdade, retenção de documentos, escravidão por dívidas e efetivas condições degradantes. Dessa maneira, o combate ao trabalho escravo poderia ser efetivamente realizado, vindo a extinguir a barbárie que ainda perdura.

De nada adianta o recurso a princípios que, de tão genéricos e abstratos, a tudo servem, o que significa dizer que para nada servem. Quando expressões do tipo “dignidade humana” são empregadas a torto e a direito, elas revelam apenas ausência de precisão e definição de quem as utiliza. Tal expressão se presta a tantos significados quanto os sujeitos que as utilizam, perdendo o propósito de moralidade que nela está embutido. Para conceitos serem aplicados juridicamente devem eles ser precisos, sob pena de se tornarem meros instrumentos demagógicos.

A discórdia nasce do uso arbitrário e ideológico de conceitos. A concórdia, de sua precisão e também da boa-fé dos interlocutores. O ministro Ronaldo Nogueira, dada a celeuma suscitada, pôs-se na posição de quem sabe e pretende negociar, anunciando um aprimoramento dessa portaria, visando a corrigir eventuais distorções e incompreensões. Duas visitas à procuradora-geral, dra. Raquel Dodge, foram realizadas, tendo por objeto o entendimento.

Conforme noticiado pelo próprio Ministério Público, a procuradora-geral teria feito sugestões, como a de tornar o acompanhamento da Polícia Federal aos auditores uma tarefa própria de polícia judiciária. Assim, os empresários infratores seriam objeto de boletins de ocorrência, instaurando, em nova delegacia especializada, um processo efetivamente criminal. Criminosos seriam definitivamente punidos. A resposta do ministro, por sua vez, foi a de acatar essa proposta, além de outras que eventualmente vierem a ser negociadas.

A ministra Rosa Weber, do STF, concedeu liminar sustando a vigência da portaria. Espera-se que o Supremo não venha, mais uma vez, a fazer parte do problema, em vez de sua solução. Uma República se faz pela harmonia de seus Poderes, numa colaboração que tem como finalidade maior o aprimoramento geral das instituições. Se em vez disso tivermos um mero tiroteio ideológico, é o próprio bem comum a primeira de suas vítimas.

*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS; E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR