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Opinião|Retomar o fio da meada

Atualização:

No mês de abril de 2014, ainda antes da infausta Copa do Mundo, este articulista, intrigado com a falta de previsibilidade sobre a natureza da situação que já então nos afligia, arriscou-se a caracterizá-la como esquisita. Passados a sucessão presidencial, os revoluteios presidenciais em matéria econômica – do fiscalismo de Joaquim Levi para o dito keynesianismo do atual ministro da Fazenda, Nelson Barbosa –, a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, as ações que se sucedem em vertigem da Operação Lava Jato, que afetam partidos e políticos e já atingem o ex-presidente Lula, cabe o reparo: a situação está esquisitíssima e é de alto risco para a democracia brasileira.

Vive-se um fim de ciclo e nada garante que o próximo será melhor do que este em via de fechar. Há tempos que nosso mundo gira fora do eixo dos seus gonzos. Estamos, agora, no reino da imprevisibilidade, condenados a marchar nas trevas, uma vez que o passado não mais ilumina o futuro, uma vez que deixamos escapar, por manobras erráticas e ambições de poder, o rico repertório que criamos ao longo das lutas contra o regime militar e nos conduziu à democratização do País.

Não se chegou a esse momento de refundação da vida republicana com as mãos abanando, pois foi antecedido por uma bem-sucedida revisão crítica, por parte das ciências sociais, da nossa história de autoritarismo político e pela ação de movimentos sociais e partidos políticos aplicados na mesma direção.

Um brevíssimo inventário desse tempo de ideias e práticas novas que se aplicaram em pôr a nu as razões de fundo da nossa persistente síndrome autoritária não pode omitir o primeiro congresso dos trabalhadores metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em 1974, que denunciou a estrutura corporativa sindical – Lula alçou-se ali à cena pública nacional, como lembrou o ex-ministro Almir Pazzianotto em artigo recente –, nem o documento eleitoral do MDB, também de 1974, solicitado por seus dirigentes a intelectuais de diferentes tendências políticas, norte da campanha eleitoral que infligiu a primeira derrota política ao partido do regime militar na disputa pelo Senado no Estado de São Paulo, naquele mesmo ano.

Podem-se alinhar outras iniciativas significativas, como, entre outras, a publicação de São Paulo – Crescimento e Pobreza (São Paulo, Loyola, 1975), coletânea de textos, produzidos sob a instigação do cardeal Paulo Evaristo Arns, que redigiu a apresentação, onde se pretendeu fixar as linhas de política social da frente democrática de oposição ao regime autoritário. Uma das mais marcantes, pelo tempo de duração – cerca de dois meses –, pela afluência de público e pela representatividade das personalidades envolvidas, foi a dos seminários do círculo de debates no Teatro Casa Grande (Rio de Janeiro) no primeiro semestre de 1978, que foram transcritos e publicados pela Editora Vozes em 1979 com o título de Conjuntura Nacional – o articulista não resiste ao registro de que esteve entre seus organizadores e participantes.

Os temas desses seminários iam da questão imperativa da hora, como a dos obstáculos e exigências para a transição para a democracia, então em embrião, ao da organização sindical, passando pela da indústria, a dos empresários e suas opções políticas, pela agrária, não faltando a da cultura e a nuclear, que deixaram seus rastros na cultura democrática que prevaleceu na Constituinte de 1988 e na social-democracia à brasileira que medrou a partir daí. Vale a lembrança de que, após a democratização do País, dos quase 30 conferencistas desse círculo de debates, 6 se tornaram ministros de Estado e 2, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, ocuparam a Presidência da República.

Hoje, como na Itabira do poeta, esses idos de boa memória, agora apenas um quadro na parede, doem e parecem ser de pouca serventia para orientar a ação. De fato, o passado não mais ilumina, e somos testemunhas da emergência de movimentos juvenis enérgicos e buliçosos – como o dos secundaristas de São Paulo que ocuparam suas escolas em protesto contra processos de reforma educacional e em boa parte se encontram nas ruas contra o aumento das tarifas nos transportes públicos –, sem a memória da cultura democrática que nos levou à Carta de 88. 

Por desastres da ação humana, tudo indica que nosso esboço de social-democracia conhece o risco de gorar e, com ela, a concepção generosa e afirmativa do Brasil como um lugar propício, tal como nas linhas traçadas pelas obras de Richard Morse e de Darcy Ribeiro, à recriação da História do Ocidente em bases mais fraternas e solidárias. Estão aí, ecoando essas ameaças, o programa de História que se apresentou no projeto do currículo nacional de iniciativa do Ministério da Educação, e os novos programas partidários, como o da Rede e o do Raízes, que, apesar de trazerem inovações importantes, fazem tábula rasa das nossas conquistas civilizatórias e dos ideais de igual-liberdade que nunca deixaram de vicejar aqui. 

O populismo, que acabou por encontrar, em meio aos zigue-zagues da nossa política, um lugar imprevisto no PT, mais como um filho das circunstâncias e do pragmatismo da sua principal liderança, não teve como se apresentar de corpo inteiro em razão das origens desse partido no sindicalismo operário moderno e em estratos intelectuais cultivados. Agora ameaça ressurgir com antigos personagens e narrativas messiânicas de ideólogos que o cultivam sem os constrangimentos que, antes, o PT experimentou ao flertar com ele.

Para enfrentar nossos males não bastam os bons resultados da Operação Lava Jato, pois, como sempre, nosso destino vai depender da batalha de ideias, que, aliás, já começou. Lá atrás, há um fio de meada a ser retomado para nos guiar nesse terreno baldio que se tornou a política brasileira a fim de barrar o caminho dos cavaleiros da fortuna que vêm por aí.

*Luiz Werneck Vianna é sociógo, PUC-Rio

Opinião por Luiz Werneck Vianna