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Opinião|Roberto Campos, 100 anos

No dia do centenário foram lançados dois livros em homenagem à sua memória

Atualização:

Roberto Campos nasceu em 17 de abril de 1917. Marcando os 100 anos dessa data, este jornal merecidamente dedicou-lhe duas páginas da sua edição do último domingo, em reportagem do jornalista José Fucs. Veio junto com artigos de Paulo Roberto de Almeida, Paulo Rabello de Castro e Antonio Delfim Netto.

O primeiro foi diplomata e os dois últimos são economistas. Campos foi, também, economista e político, como Delfim Netto, com o qual, como deputados federais, teve dois mandatos coincidentes. Delfim conta que se sentavam juntos na Câmara e que ambos nunca foram à tribuna da Casa, “(...) porque era absolutamente inútil”. E que se divertiam com as propostas mirabolantes, “(...) em altos decibéis e baixo raciocínio, dos que se supunham de ‘esquerda’ apenas porque ignoravam as limitações físicas que caracterizam qualquer economia, mesmo as socialistas”.

Pena que as conversas entre os dois não levaram a um livro em coautoria. Certamente, seria interessante, mas atualmente o que ouviam naquela época seria avaliado como trágico e sem nenhuma graça, pois a filosofia então pregada acabou levando o País, via Lula e Dilma, à crise que ora atravessa. E muita gente continua a defender as mesmas ideias.

No mesmo dia dos 100 anos vieram dois livros sobre Campos e o muito que fez enquanto viveu, até 2001. O primeiro, O homem que pensou o Brasil, foi organizado pelo mesmo Paulo Roberto, também um dos autores, junto com outros dez (ed. Appris, 373 páginas). O segundo, Lanterna na proa, teve Paulo Rabello de Castro e Ives Gandra da Silva Martins como organizadores-autores e mais 60 (!) colaboradores (ed. Resistência Cultural, 340 páginas).

Fui um deles e o convite veio com enorme lista de tópicos para escolha, mais a exigência de textos limitados a três laudas. Do meu farei um brevíssimo resumo. Escolhi o Banco Nacional de Habitação (BNH) como tema, e comecei com algumas referências ao homenageado.

Ele passou a receber minha atenção quando eu cursava graduação em Economia. Já diplomata e economista de prestígio, ganhou, então, maior notoriedade como ministro do Planejamento no governo Castelo Branco (1964-1967). Só o conheci pessoalmente em 1980, quando era embaixador no Reino Unido. Fiquei impressionado com a extensão de sua cultura. Outra vez que o vi foi num evento em Boston (EUA), que me deixou lembrança inesquecível. Numa tirada de bom humor, do qual também era bem dotado, começou dizendo que não recorreria ao português, tanto pela ausência de tradução simultânea como também por se tratar de língua tão secreta que teria sido usada como código na 2.ª Guerra Mundial, do lado dos Países Aliados. Vieram risos e aplausos, e também impressionou a plateia com o que falou em seguida, num inglês perfeito.

Continuei encontrando-o ocasionalmente, e sempre atento a seus artigos em jornais e à sua presença na televisão. No seu livro de memórias, A lanterna na popa (ed. Topbooks, 1994), vez por outra dou uma olhada pelas suas 1.417 páginas. Em face da qualidade do texto, dessas tantas páginas e de um ótimo índice de referências ao final, serve como consulta sobre vários assuntos iluminados pela lanterna do autor.

Quanto ao BNH, veio em 1964 e foi extinto em 1986. Campos participou do projeto de sua criação. Embora tido por alguns como um liberal radical, nunca deixou de admitir intervenções estatais mediante políticas públicas, em particular as realizadas em parceria com o setor privado, como foi o caso do BNH.

Escolhi este tema porque em 1991, então no governo federal, lidei com assunto correlato, o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), de cujo conselho gestor participava. O BNH inovou relativamente ao financiamento habitacional anterior, sustentado por recursos muito restritos. E, com a aceleração do processo inflacionário, o financiamento era um privilégio, pois seu valor não era corrigido monetariamente. O novo modelo centralizou no BNH a administração do também criado Sistema Financeiro Habitacional (SFH), estabeleceu essa correção, e esse sistema também incluía instituições financeiras que captavam recursos via cadernetas de poupança. A partir de 1967, o BNH também passou a gerir o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criado no ano anterior.

A gestão do BNH foi desvirtuada, entre outras razões, porque não focou tanto no segmento de baixa renda, conforme seu propósito original. Recorde-se também de que a década de 1980 foi marcada por mau desempenho econômico, o que também reduziu saldos de cadernetas de poupança. E vieram dificuldades para mutuários às voltas com a correção monetária de suas prestações. Entrou, então, em cena o populismo, em particular no governo Sarney, atuando por meio de reajuste das prestações muito abaixo do que seria a sua efetiva correção monetária, o que desequilibrou o SFH. E favoreceu enormemente os mutuários, como se recebessem do governo a doação de grande parte do imóvel financiado.

Campos, aliás, colocou o populismo em primeiro lugar na sua lista de cinco ismos fatais, que também incluem o estruturalismo, o protecionismo, o estatismo e o nacionalismo.

Cabia ao FCVS definir regras para indenizar as instituições financeiras pela diferença entre os custos dos financiamentos e o valor, bem menor, das prestações que recebiam dos mutuários. Quanto ao prejuízo para os cofres públicos, não achei números recentes, mas uma reportagem de 14/6/2011 deste jornal avaliou que “(...) o rombo do FCVS reconhecido pelo Tesouro era de R$ 182 bilhões, mas poderia chegar a R$ 197 bilhões, se ações judiciais não forem revertidas”.

No índice detalhado de A lanterna na popa não vi nenhuma referência ao BNH nem ao FCVS. Em retrospecto, talvez Campos tenha preferido se esquecer deles, em face do desastre que marca a história de ambos.

* ROBERTO MACEDO É ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR