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Opinião|Separação de Poderes, harmonia e independência

Atualização:

A teoria da separação de Poderes foi idealizada e construída por Charles-Louis de Seconda, conhecido como Montesquieu (1698-1755), como homenagem à liberdade. Sua principal obra política é O Espírito das Leis, em que expõe toda a sua teoria política.

Na primeira linha do livro I de O Espírito das Leis Montesquieu define o seu conceito de lei, ou seja, as leis são relações necessárias que derivam da natureza das coisas; portanto, o Estado não será o mesmo em todos os lugares. Pode ter semelhanças e será até possível elaborar uma tipologia, mas jamais os conceitos serão iguais. Como lembra o respeitado professor Régis Fernandes de Oliveira em seu mais recente livro, Indagação sobre os Limites da Ação do Estado, “as leis relacionam-se com circunstâncias físicas (geografia, clima) e sociais (costumes, comércio, religião). Cada Estado é diferente do outro” (obra citada, página 52).

A liberdade, como pensava Montesquieu, não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer, e não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar, sempre tendo em vista o que é independência e o que é liberdade, este é o direito de fazer tudo aquilo que as leis facultam.

No item IV do livro XI, Montesquieu leciona: “É uma experiência eterna que todo homem que deteve poder é sempre tentado a abusar dele; e assim irá seguindo até que encontre limites”.

A Constituição brasileira de 1988 inseriu como um dos seus princípios fundamentais a regra do artigo 2.º: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Independência e harmonia são palavras-chave acolhidas na Carta Magna com base na teoria da repartição dos Poderes, construída por Montesquieu.

As competências de cada um dos Poderes também estão minuciosamente descritos na Constituição de 1988.

O Brasil passa por uma grave crise político-institucional e econômica. Os problemas que dela advêm acabam desaguando nos Poderes constituídos. O ativismo judicial/político tem surgido com lamentável frequência, invadindo as competências constitucionais e abalando o Estado Democrático de Direito.

São recorrentes de momentos em que a ética volta ao outro centro do debate político-institucional, atraindo a atenção da opinião pública e da mídia. A ética é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, essa dura conquista que vem sendo consolidada desde a edição da Carta de 88 e está na base de avanços institucionais, econômicos e sociais obtidos nas últimas décadas. Afinal, ser ético, correto e honesto seria o mínimo que um cidadão (na acepção plena da palavra) deveria oferecer à sociedade em que vive, seja ele político ou não.

A ausência de ética, com todas as consequências, é mais danosa quando a vítima é um país com tantas carências como o Brasil, onde ainda há tanto por fazer. Ou alguém duvida de que o dinheiro drenado nos casos de corrupção já comprovados, se bem investido, teria possibilitado um avanço mais rápido rumo a um país mais moderno, menos desigual e mais bem equipado para assegurar a sustentabilidade de seu desenvolvimento?

Quando, nos Poderes constituídos e no tecido social, os interesses pessoais, corporativos ou de grupos prevalecem sobre as demandas da sociedade, macula-se a democracia, aprofundam-se as desigualdades e dissemina-se a descrença na Justiça e nas instituições.

Nas democracias plenas, o eleito deve exercer a sua função pautando-se por inabalável consciência ética. É fundamental resistir às tentações inerentes ao poder, repudiar, denunciar e punir os corruptos e corruptores para evitar a repetição de vícios seculares, que mancham a História brasileira. Essa é a parte dos políticos em cargos representativos. Já o dever dos eleitores é recorrer à consciência cívica para decidirem o seu voto e aplicarem a ética no seu dia a dia como cidadãos.

Há sinais animadores no horizonte de que a impunidade – talvez a mais poderosa raiz dos desmandos no poder público – tenha sofrido boas fraturas com as recentes leis e decisões judiciais que condenam réus com culpas comprovadas por criteriosas investigações. São exemplos como esses que fundamentam a crença de que a ética, ao menos no Brasil, está deixando de ser apenas um capítulo árido do curso de Filosofia.

Em vários artigos anteriores manifestei a esperança – que renovo – de que os movimentos pela ética consigam mandar para a lata do lixo a História (onde esperamos que permaneçam) conceitos e práticas que contribuem para denegrir a imagem do Brasil no mundo, para enfraquecer valores da cidadania e para deformar novas gerações, ao retirar-lhes a perspectiva de paz, justiça e igualdade social.

Surpreendeu-nos, por exemplo, recente despacho do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinando ao então presidente da Câmara dos Deputados a instauração de comissão para analisar pedido de impeachment do vice-presidente da República, Michel Temer. E o princípio da independência e harmonia dos Poderes? E onde estaria na Constituição de 1988 a possibilidade legal de medida dessa natureza contra o vice-presidente da República?

São questões que necessitam de reflexões de todos os brasileiros visando ao aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito.

O saudoso amigo Joelmir Beting, no prefácio do seu livro Na Prática a Teoria é Outra, cita o pensamento do escritor James Baldwin, aplicável ao atual momento conjuntural: “Nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado. Mas nada pode ser modificado até que se enfrente”.

*Ruy Martins Altendelder Silva é advogado e presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas e do Conselho Superior de Estudos Avançados da Fiesp

Opinião por Ruy Martins Altendelder Silva