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'Shutdown' contra Obama

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Por Redação
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Antes que os 21 anos de regime militar fizessem o País descobrir que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras, os mais raivosos entre os adversários de um candidato a presidente da República diziam que, se ele se eleger, não tomará posse; se tomar, não governará. Nos EUA, excluída, por inconcebível, a primeira metade da ameaça, a outra foi a bandeira da direita a caminho de se tornar hegemônica no Partido Republicano, tão logo as urnas de 2008 conduziram à Casa Branca o seu primeiro ocupante negro, o democrata Barack Obama. Ultramontanos, fundamentalistas, adoradores do livre mercado e fanatizados pela teoria conspiratória de que o plano secreto do novo presidente era implantar o "socialismo" no país puseram-se a combatê-lo com todo o arsenal a seu dispor.Diferentemente do que possa parecer ao olhar estrangeiro, o presidencialismo americano confere enorme soma de poderes ao Congresso, diante do qual, se lhe falta clara maioria parlamentar, o Executivo se vê muitas vezes obrigado a transigir, quando não a negociar na base do "toma lá dá cá". Nos dois primeiros anos de seu mandato, dada a relação de forças nas duas Casas do Capitólio, os republicanos não conseguiram abater o Obamacare, o projeto que praticamente compele a população a ter um plano de cobertura médica - o atraso social dos EUA nesse campo não tem rival entre as nações desenvolvidas. Mas, para manter a sua proposta respirando, o presidente empilhou uma concessão depois de outra aos republicanos - o setor público, por exemplo, foi excluído dos potenciais provedores de seguro-saúde. Em 2010, o projeto passou - e, no ano passado, para fúria dos conservadores, a Suprema Corte o considerou constitucional.Obama pôde assim cumprir a sua principal promessa de campanha na frente doméstica ainda no primeiro período de governo, o que lhe valeu não poucos votos para se reeleger. Mas, nesse meio tempo, o antagonismo republicano se exacerbou com a ampla maioria obtida pelo partido em 2010 na Câmara dos Representantes, nas eleições para a renovação de parcela do Congresso. A maioria dos novos deputados foi indicada ou teve o apoio do famigerado Tea Party, que prega a abolição dos impostos federais, cortes dramáticos no gasto público e remoção radical dos poderes da Casa Branca. E foi essa gente que tentou chantagear o presidente, condicionando ao adiamento, por um ano, da vigência do programa de saúde a liberação de verbas para dispêndios do governo de curto prazo, aprovada no Senado de maioria democrata. Obama disse não e, ao primeiro minuto de ontem, a data fatal prevista em lei, o Executivo entrou no chamado regime de shutdown - a interrupção de suas atividades não essenciais. Com isso, cerca de 800 mil servidores entraram em compulsória licença não remunerada. A última vez que isso aconteceu foi em janeiro de 1996, quando a maioria republicana de turno tentou travar o governo Bill Clinton. Depois de 21 dias, a direita piscou - e, dez meses depois, ele se reelegeu folgadamente. Agora, algo pior do que o "cúmulo da irresponsabilidade", como Obama se referiu à afronta de seus inimigos, está à espreita. Se até o próximo dia 17 o Capitólio não autorizar o aumento do teto da dívida pública (US$ 16,7 trilhões, atualmente) para o ano fiscal que se inicia, a Casa Branca ficará com apenas US$ 30 bilhões em caixa. Em consequência, não terá como pagar, além das parcelas da própria dívida, as aposentadorias e as estratosféricas contas militares.Sem a elevação do limite da dívida, o governo teria de cortar 20% dos seus gastos - o equivalente a 4% do PIB. Ainda que a catástrofe não sobrevenha, o shutdown tenderá a desencadear uma crise de confiança na razão direta de sua duração, com óbvio impacto sobre a economia americana - que cresceu apreciáveis 2,5% no trimestre findo em junho. É de imaginar o efeito cascata sobre a atividade produtiva e as finanças globais. No limite, o primitivismo dos extremistas americanos poderá reeditar a recessão que se seguiu ao colapso de Wall Street em 2008.