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Opinião|Sim à solidariedade

Atualização:

O papa Francisco vem se referindo repetidamente o conceito de indiferença. Lembramos seu grito de alerta na Ilha de Lampedusa, no sul da Itália, lançado às autoridades diante do drama dos refugiados e dos imigrantes clandestinos; muitos deles, vítimas de tráfico humano, acabaram abandonados à própria sorte e tragados pelas águas do Mediterrâneo. Diante desse drama humano imenso e do empurra-empurra de governos, lavando as mãos, Francisco conclamou a dizer "não à globalização da indiferença"! Aos jovens, reunidos na orla de Copacabana, o papa também convidou a reagirem diante da tentação da indiferença e a tornar-se protagonistas de uma sociedade melhor. Novamente agora, em sua mensagem para a Quaresma de 2015, Francisco aborda a questão da indiferença, que qualifica como um estado de espírito de insensibilidade diante da dor e das necessidades do próximo. A indiferença leva a nos refugiarmos numa zona de conforto, com as fáceis justificações de que não podemos fazer nada para mudar as situações, que a responsabilidade não é nossa, a culpa é dos outros... E assim é possível passar ao lado das pessoas que sofrem, ou vivem situações de risco ou dor, sem nada sentir, seguindo adiante com a impassibilidade de quem tem a consciência tranquila, ou encontrou uma boa razão para se convencer de que não tem nada que ver com aquilo. "A indiferença atingiu uma dimensão mundial", observa o papa. Talvez pensemos logo no drama dos que sofrem nas frentes de guerras absurdas, ou são torturados e assassinados por terroristas fanáticos e intolerantes que querem assustar o mundo com seus espetáculos de horror; ou nas vítimas de epidemias e desastres naturais bem longe de nós. Mas também ao nosso lado existem muitas situações que demandam nossa sensibilidade e iniciativa solidária. Estamos saturados de imagens e notícias impressionantes sobre o sofrimento humano e nos acostumamos a ver isso com normalidade, como parte da tragédia humana; é como se assistíssemos a um filme, em que as cenas não são reais. De resto, sentimo-nos impotentes para intervir e mudar alguma coisa... Levando a sério nossa incapacidade pessoal para dar solução às tragédias humanas, seguimos em frente com as preocupações focadas em projetos pessoais, no esforço para a realização das metas profissionais e sociais. A indiferença obscurece o que há de humano em nós. A capacidade de reconhecer o outro como um semelhante a nós, uma parte de nós mesmos, é uma das coisas mais belas e nobres no ser humano; o sofrimento do outro se torna nosso também; sua alegria é também a nossa. O humano revela-se na solidariedade, no sentir-se parte do próximo; a sorte de um está ligada à de todos os demais; somos parte de uma mesma grande família de irmãos e membros de um mesmo corpo, como ensinava São Paulo: "Se um membro sofre, todos os membros sofrem" (1Cor 12,26). Não estará nossa cultura contemporânea afetada por um vírus perigoso, chamado egoísmo, que leva a uma exagerada vontade de afirmação do "eu" e a perder a noção de solidariedade, compaixão e fraternidade? A afirmação exasperada do ego leva ao fechamento e à perda da sensibilidade diante do próximo, favorecendo a formação de indivíduos presos em si mesmos, mônadas sem portas nem janelas, incapazes de se comunicar com o mundo e as pessoas ao seu redor. Os sentimentos dos outros nada dizem a quem se basta a si mesmo e não sente necessidade de receber algo do outro; as alegrias e dores de quem está perto ou longe não lhe interessam e não o deixam mais alegre ou triste. O indivíduo autossuficiente será capaz de experimentar a felicidade dos outros? De compartilhar a própria felicidade? A indiferença leva à dureza do coração; quando isso acontece com alguém, facilmente o qualificamos como "duro, desumano". Não é belo quando se perde aquilo que mais nos qualifica como humanos. É preocupante quando o próprio convívio social se torna desumanizador, levando as pessoas a não mais ligarem para o que há de humano também nos outros. A violência difusa não seria um sintoma desse mal social? O convívio pouco humanizado dá espaço ao surgimento da brutalidade contra o próximo, muitas vezes por motivos totalmente banais. Não é diversa a lógica que está por trás da apropriação do bem alheio, seja ele privado ou público. Quando um bem público é desviado de sua finalidade, ou apropriado indevidamente por alguém, não está sendo prejudicado apenas um ente genérico e sem alma, chamado Estado ou sociedade: são prejudicados cidadãos de carne e osso, muitas vezes pobres e doentes, que deveriam ser beneficiados com tal recurso; escolas, hospitais e outros serviços públicos dependem desses recursos surrupiados. É a mesma dinâmica egocêntrica da indiferença que faz perder o senso da honestidade, da justiça e até da vergonha, levando ao desrespeito pela pessoa e pelos direitos do próximo. Os grandes escândalos de corrupção e desvio de recursos públicos têm por trás a diluição do senso moral da honestidade e da dignidade. Em vez da indiferença, é preciso globalizar a solidariedade, certos de que todos são responsáveis por todos; as decisões e ações privadas nunca são totalmente privadas, mas têm repercussão sobre os outros, no bem e no mal. É preciso dizer sim à solidariedade, para pensar em termos comunitários e dar prioridade àquilo que favorece o bem comum e a vida de todos. A solidariedade vai no sentido contrário do egoísmo e supõe o reconhecimento da função social da propriedade e da destinação universal dos bens deste mundo. Em vez da globalização da indiferença, o que o mundo precisa é a globalização da solidariedade.* Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo

Opinião por DOM ODILO P. SCHERER