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Opinião|Sobre o tratamento do menino Samuel

O progresso clínico e cirúrgico para tratar a falência intestinal no Brasil é indiscutível

Atualização:

O tratamento das doenças que levam pacientes adultos e crianças à falência intestinal (FI) tem causado confusão e dúvidas, justificando alguns esclarecimentos e comentários. Recentemente, o caso do menino Samuel, portador da Síndrome de Berdon, doença hereditária que causa FI em consequência de alterações irreversíveis do aparelho digestivo e urinário, tem comovido a todos pelas iniciativas dramáticas adotadas por seu pai na tentativa de obter tratamento para seu filho.

A falência intestinal caracteriza-se pela incapacidade de absorver nutrientes pelo intestino, levando à malnutrição e à distúrbios eletrolíticos no sangue que podem causar a morte dos pacientes afetados.

A FI pode ser consequente a várias causas. Na maioria das vezes, ocorre ou após ressecção maciça do intestino ou alterações genéticas e motoras do trato gastrointestinal.

O tratamento pode ser clínico ou cirúrgico. O primeiro consiste na alimentação parenteral prolongada (NPP) precisamente balanceada para evitar graves lesões em outros órgãos, principalmente no fígado. A NPP exige cuidados especiais também para evitar infecção e obstrução das veias centrais pelas quais é administrada. Quando isso acontece, implica a interrupção do tratamento e o óbito do paciente. O objetivo do tratamento clínico é permitir aos pacientes receber a NPP em ambiente domiciliar, evitando infecções hospitalares e oferecendo melhor qualidade de vida.

O tratamento cirúrgico consiste, quando indicado, em tentativas de alongamento intestinal e na reconstrução do trato gastrointestinal. Em algumas doenças genéticas e motoras, a reconstrução não é possível, pela presença de alterações em todo o intestino. Em 10% dos pacientes o transplante isolado de intestino ou o transplante de órgãos abdominais combinados (transplante multivisceral) se tornam as únicas opções, com índices de sobrevida bastante aceitáveis. Entretanto, é importante salientar que se trata de cirurgia complexa, realizada em poucos centros.

Chefiamos em Miami (EUA) um serviço de transplante de órgãos com grande experiência no tratamento de crianças com falência intestinal. Desde 1994, centenas de pacientes passaram por reabilitação e, destes, 400 foram transplantados (intestino e multivisceral), com sobrevida atuarial de um ano acima de 80%.

No Brasil, esses transplantes foram realizados apenas em adultos. Não foram realizados em crianças pela falta de doadores de baixo peso. Ainda que a captação no Brasil seja razoável para órgãos adultos, o mesmo não se verifica – tal como em todo mundo – no caso de órgãos pediátricos.

Diante disso, muitas famílias têm recorrido ao Poder Judiciário para exigir do Ministério da Saúde (MS) a transferência de crianças candidatas ao transplante para o exterior. Desde 2013, cinco casos foram encaminhados a Miami: três foram transplantados e estão em recuperação, um foi transplantado e faleceu cinco meses depois e o outro aguarda há mais de um ano e deve retornar ao Brasil por falta de condições clínicas que permitam a realização do procedimento.

O Sistema Nacional de Transplante (SNT) do Ministério da Saúde informa que o custo médio do tratamento e da permanência de cada paciente e de seus familiares no exterior tem sido de cerca de R$ 5 milhões. Por outro lado, o Registro Brasileiro de Transplantes informa que, em 2016, 1.948 inscritos em listas de espera faleceram por falta de órgãos/transplante, 81 dos quais eram crianças. Obviamente, seria inviável a transferência de todos esses pacientes para outros países, ainda porque também aí a mortalidade em lista de espera, por falta de órgãos, se dá em números expressivos.

Além disso, depois de 2010 o progresso no tratamento clínico e cirúrgico da FI no Brasil é indiscutível. Entre outras razões, vale citar que mais de 80 brasileiros foram enviados para estágio ao nosso serviço e continuamos dispostos a auxiliar, sempre que possível, na formação de profissionais e na definição de condutas.

Considerando todos esses fatos, apesar de muitas ações ainda estarem em andamento, o sistema judiciário não tem mais determinado o tratamento no exterior. Compreende-se, assim, a conduta adotada atualmente pelo SNT: prestar tratamento clínico (NPP) a todas as crianças afetadas e incentivar a captação de órgãos de doadores pediátricos.

Essa justa decisão tem causado entre os familiares, um sentimento de perplexidade e angústia, decorrente da dúvida se suas crianças estão, de fato, recebendo o melhor tratamento. Isso explica o comportamento do pai do menino Samuel.

Sendo brasileiro e com vista aos bons resultados obtidos pelo nosso grupo em Miami, muitos têm me procurado solicitando uma opinião, que passo a externar aqui de forma clara, diante do estado atual da questão no Brasil:

• Em todos os casos deve ser procurado o SNT, para se obter informações para cadastro.

• O SNT os encaminhará para os centros credenciados para tratamento com NPP. Esta será inicialmente administrada em ambiente hospitalar e, a seguir, para os casos com boa evolução, no âmbito domiciliar.

• Nos casos em que o transplante for necessário, a primeira opção deve ser sempre a permanência no Brasil, dado o progresso do setor no último ano e a impossibilidade de adotar a mesma conduta para os outros pacientes brasileiros, crianças incluídas, que falecem por falta de doadores/transplantes de outros órgãos.

Finalizando, desejo enfatizar que a experiência adquirida nos últimos anos com o tratamento dessas crianças estimula um apelo que agora faço a todos os envolvidos, para que sigam a orientação recente do papa Francisco recomendando que todos os atos relacionados ao transplante de órgãos sejam norteados pelo sentimento da misericórdia.

*Professor titular da Universidade de Miami (EUA), é chefe dos serviços de transplante de órgãos do  Jackson Memorial Hospital