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Opinião|Sobre poder, relevância e coragem

Os corajosos brasileiros da Lava Jato merecem e precisam do apoio explícito da população

Atualização:

O austríaco Alfred Adler desenvolveu a linha de psicoterapia conhecida como Escola da Psicologia Individual. Adler estabeleceu que os indivíduos são movidos primordialmente por desejos de realização, poder e superioridade. Segundo ele, o exercício do poder e a vontade de influenciar as ações de outros em direção aos nossos propósitos são inerentes à natureza humana. Em suas formas patológicas, a busca de poder e dominância se manifesta por extrema ambição, vaidade desmedida, desejo de conquistar as pessoas a qualquer preço e ausência de consideração pelos sentimentos dos outros. O exercício saudável desses impulsos, por sua vez, considera não apenas “as recompensas emocionais e materiais inerentes à posse e ao exercício do poder”, mas também ocorre “em virtude do serviço que presta aos interesses e valores sociais”. Para Adler, “todo ser humano se esforça para ser relevante, mas as pessoas sempre cometem erros se não enxergam que toda a sua relevância deve ser encontrada na contribuição para a vida dos outros”.

Enquanto a maioria dos indivíduos busca e consegue ter algum impacto positivo nas pessoas à sua volta – familiares, amigos e colegas –, alguns poucos são afortunados a ponto de impactarem positivamente milhares ou mesmo milhões. Sempre o conseguem cooperando com seus pares e se apoiando nos avanços dos que os antecederam, mas se destacam individualmente por seu próprio brilho, sua coragem e dedicação. Recebem a sociedade num estágio e são capazes de deixá-la num novo e mais alto patamar, fazendo progredir a vida de gerações à frente.

No Brasil, um dos maiores exemplos de relevância e impacto na sociedade vem de um grupo de indivíduos – apenas por acaso, contemporâneos de Adler – que causaram profunda mudança nas condições de vida no País. O nome deles é reconhecido nacional e internacionalmente. São eles os sanitaristas Oswaldo Cruz, Vital Brasil, Adolfo Lutz, Emílio Ribas e Carlos Chagas.

Ao mesmo tempo cientistas e homens de ação, eles estudaram os agentes, a transmissão e as formas de combater doenças que assolavam endêmica ou epidemicamente desde o Rio de Janeiro até as mais longínquas localidades do Amazonas. A erradicação da peste bubônica, da varíola e da cólera e também o controle da malária, da febre amarela e da doença de Chagas foram possíveis graças às suas descobertas e também à sua atuação e iniciativa, inúmeras vezes arriscando a própria saúde e com frequência enfrentando a falta de compreensão e resistência das mesmas populações que pretendiam ajudar. Nossos brilhantes, corajosos e dedicados sanitaristas salvaram e ainda salvam incontáveis vidas e tornaram o País mais seguro, saudável e civilizado.

Passados mais de cem anos, temos a oportunidade de apreciar o trabalho de outro grupo notável de brasileiros que têm prestado um serviço descomunal ao País. Esse grupo é formado por procuradores, policiais federais e juízes de primeira instância empenhados no combate à corrupção e tem entre seus nomes mais proeminentes Sergio Moro, Deltan Dallagnol, Carlos Fernando dos Santos Lima, Igor Romário de Paula, Márcio Adriano Ancelmo, Erika Marena, Wallisney de Souza Oliveira, Marcelo Bretas, Roberson Pozzobon e Paulo Roberto Galvão. Junto com suas equipes, eles têm enfrentado com coragem exemplar vários dos mais poderosos políticos, governantes e empresários do País. Eles têm combatido a destruição de valores éticos, políticos e econômicos provocada pela funesta combinação de corrupção, incompetência e ideologia que assolou o País na última década e meia e deixou uma conta da ordem de 1 trilhão de reais.

À medida que avança em seus intentos, esse grupo tem enfrentado reações cada vez mais intensas daqueles que tiveram ou podem ter seus malfeitos expostos ou suas posições de poder ameaçadas, por exemplo, materializadas no projeto de lei sobre abuso de poder ou na progressiva desmobilização de membros de suas equipes. Defender a atuação desse grupo, no entanto, não significa eximi-los de eventuais erros ou excessos. Tampouco sugerir que todos os políticos e governantes deveriam estar sob sua mira, por serem igualmente desqualificados ou desonestos, pois não o são. Apesar disso, numa iniciativa desse vulto, alguns erros são inevitáveis e devem ser corrigidos. Eventuais excessos, mesmo que bem-intencionados, devem ser expostos, criticados e devidamente endereçados por instâncias superiores. Importante reforçar, por outro lado, que o que se tem visto é uma atuação na prática quase impecável, ainda mais se consideradas a quantidade e a sofisticação dos crimes que estão sendo esclarecidos. Em números atualizados no último mês de julho pelo Ministério Público Federal, só a Operação Lava Jato já levou a 157 condenações – totalizando 1.573 anos de penas – e à recuperação de mais de R$ 10 bilhões.

Nas últimas semanas, o tumulto provocado pelo controverso acordo de delação da JBS realizado pela Procuradoria-Geral da República, a consequente fragilização do governo federal e a aparente desmobilização da população que foi às ruas bradar contra a corrupção só fizeram assanhar seus críticos e aumentar o número de iniciativas que tentam fragilizar essas forças-tarefa, a despeito do excepcional trabalho realizado até aqui. Neste momento da História, tal qual precisaram os médicos sanitaristas no passado, esses corajosos brasileiros merecem e precisam do apoio explícito e ruidoso da população aos seus muitos e inestimáveis acertos em prol de uma sociedade mais civilizada e na qual os cidadãos possam pensar em seu país sem sentir nenhuma vergonha.

*Engenheiro de produção, doutor em engenharia pela USP, diretor executivo e consultor de gestão, professor de liderança e comportamento organizacional do MBA executivo do Insper

Opinião por Fábio de Biazzi