Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Tomai e bebei, este é o ‘volume morto’

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Por Eugênio Bucci
4 min de leitura

No Dicionário Houaiss, água-viva, assim mesmo, com hífen, pode designar tanto a "água que brota de uma fonte ou nascente e corre em grande quantidade" como aquele bicho marinho "de corpo mole, gelatinoso e transparente, e tentáculos providos de células urticantes, capazes de provocar sérias queimaduras em seres humanos". A primeira serve para matar a sede. A segunda pode matar a gente. Palavras são traiçoeiras: a mesma expressão, com o mesmíssimo hífen, nomeia coisas tão díspares quanto o líquido que nos faz viver e o cnidário que nos faz morrer. Palavras, como frases, têm sempre mais de um sentido, inclusive essa. Palavras traem, acusam e fogem; não se pode pegá-las com a mão, não se pode prendê-las, matá-las. Não dá para comê-las. Principalmente, não há como bebê-las.Mesmo assim, uma palavra sonora, bem posta e inspiradora ajuda a melhorar o encanto que imaginamos estar presente no que bebemos ou comemos. Do mesmo modo, uma palavra repugnante atrapalha tudo. É o que se passa com a água nossa de cada dia. A despeito da multiplicidade de significados, qualquer paulistano, hoje, há de preferir beber água-viva a beber água-morta. Nada mais óbvio. Só um louco lançaria uma marca de água mineral, por exemplo, com o nome "água-morta". Não daria certo, por melhor e mais benéfica que fosse a composição química da substância engarrafada. A simples ideia de que estamos a sorver em goladas vigorosas uma entidade "morta" provoca em nós uma repulsa instintiva. "Água-morta" parece sinônimo de "água estragada", algo cujo prazo de validade venceu na outra encarnação. "Água-morta" seria uma logomarca de mau gosto, ou mesmo de mau agouro. Quem dela bebesse teria um quê de canibal. Ou, pior ainda, de urubu, de hiena, de verme. O homem civilizado não se vê como um verme, não gosta de imaginar que se abastece de matéria em franco apodrecimento.Todo esse introito se fez necessário para que se possa começar a dizer do incômodo de cada habitante desta cidade com essa notícia de que está condenado a beber do "volume morto" do tal Sistema Cantareira. Não, não se trata de criticar a Sabesp. Os guardiões da imagem do governo paulista e da campanha de recondução do governador ao Palácio dos Bandeirantes podem ficar sossegados. A Sabesp, que não tem culpa da seca, também não tem culpa se algum mortal, sabe-se lá quando, deu nome a esse negócio aí de "volume morto". Não é culpa da Sabesp. Aliás, pobre Sabesp. Deve ser mesmo desagradável ter de ofertar litros e mais litros de "volume morto" para a população lavar a louça, tomar banho, escovar os dentes e matar a sede. A culpa não é dela. A língua prega essas peças em todos os falantes, mesmo nas mais altas autoridades da mais ilibada reputação. É assim que é."Volume morto" é de matar. Por vezes soa como "arquivo morto". Parece algo empoeirado, embora líquido. Os especialistas explicam que se trata de uma água que requer tratamentos muito mais complexos para chegar até a casa dos comuns, posto que teria permanecido por muito tempo em pontos mais abissais (o adjetivo não é bom), em fossas (a palavra é péssima) submersas e, portanto, estaria bem mais suja do que as águas mais superficiais.O problema dessas explicações minuciosas é que elas não aliviam, mas agravam o desconforto do freguês. Piores ainda são as discussões a respeito dos danos ecológicos que seriam causados pelo esvaziamento do tal "volume morto". Apesar do nome - "morto" -, esse "volume" seria vital para o ecossistema. Uma vez tirado de lá, comprometeria uma certa "vida de fundo", acarretando estragos irreparáveis ao ecossistema hídrico. Embora pareça uma contradição em termos, o "volume morto" seria vital - não para nós, clientes da Sabesp, mas para o ambiente em que nossa água descansa antes de ser consumida.Os acalorados debates ecológicos aprofundam o sentimento de culpa dos fregueses da Sabesp - não a culpa da Sabesp, é claro, já que a Sabesp, como temos visto na televisão, em caudalosos comerciais, não tem culpa de nada. A Sabesp, aliás, além de ser vítima de São Pedro, esse oposicionista enrustido, agora é também vítima da panfletária flor do Lácio.Quanto mais falam em "volume morto", mais complicado e intragável vai ficando o mundo à nossa volta. O pessoal encarregado já se deu conta disso e percebeu que, para quem representa o governo ou a Sabesp, o melhor é se fingir de... morto. Tanto que uns já abandonaram a expressão "volume morto" e começaram a falar em "reserva técnica" (pelo menos não há morte implicada aí). Acontece que a expressão "reserva técnica" também é traiçoeira e tem seus inconvenientes. Faz lembrar a reserva do tanque de gasolina, o que soa como um alerta de que o combustível vital vai acabar. Não só isso. Quando pensamos na reserva do tanque de gasolina, pensamos imediatamente naqueles sujeitos que gostam de falar que o carro está "andando no cheiro" (o cheiro da gasolina seria tão forte que daria conta de mover o motor). A lembrança é nauseante. O cliente da Sabesp, crente de que água não tem cheiro, começa a se perguntar se o "volume morto" não teria um aroma pestilento, já que precisa de todas aquelas etapas de purificação. O cidadão sente tonturas.Por isso a terminologia da "reserva técnica" não ajuda grande coisa. O pessoal encarregado muda de assunto, volta ao ponto morto e, novamente, se finge de morto. Enquanto isso, o paulistano pensa no Mar Morto, que, embora bíblico, não tem água potável. Tenta mudar de bacia e se lembra do Rio das Mortes, que lhe parece trágico demais. Desesperado, em busca de um pensamento positivo, ele diz a si mesmo que no jogo de buraco quem está na frente compra "o morto" e ganha nova vida. A esperança, porém, logo se evapora. Resignado e mudo, ele abre a torneira, toma do fluxo fantasmático, póstumo e cadavérico e faz o seu bochecho matinal.

 

*Jornalista, é professor da ECA-USP e da ESPM