Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Truculência na Argentina

Exclusivo para assinantes
Por Redação
3 min de leitura

A Argentina de Cristina Kirchner é um Estado de Direito - pero no mucho. A concentração de poderes na Casa Rosada, que precedeu a presidência de seu falecido marido, Néstor, e foi por ele exacerbada, não se restringe ao controle, mediante o chicote e o afago, dos atores políticos nacionais e dos setores econômicos cujos interesses podem ser favorecidos ou prejudicados pelo Executivo, conforme a adesão das respectivas lideranças. Nesse país em que as instituições do Estado ainda estão contaminadas pelo entulho autoritário da história nacional, também o Judiciário parece vulnerável ao hiperpresidencialismo, com a sua notória prontidão para premiar ou punir. Para Cristina, como foi para Néstor - e para os autocratas de todas as latitudes -, a fidelidade pessoal do agente público não só é esperada como fato natural, mas constitui a sua maior virtude. Some-se a isso o gosto pela truculência e está traçado o pano de fundo para o mais recente ato de agressão política - não o último, decerto - cometido com o endosso da Casa Rosada.Na manhã de terça-feira, em Buenos Aires, um destacamento de 50 membros da Gendarmería, a polícia argentina de fronteiras, ocupou durante três horas a sede da Cablevisión, operadora de TV a cabo e internet do Grupo Clarín, o principal conglomerado de comunicação do país, que edita o jornal do mesmo nome, o maior da Argentina, que há três anos, numa mudança de linha editorial, passou de aliado a crítico do governo. Os policiais chegaram acompanhados por uma equipe do programa 6, 7 e 8, da televisão estatal, notabilizado pela sua virulência contra os desafetos do kirchnerismo. Os agentes intimidaram os funcionários, revistaram os seus pertences e exigiram dos executivos da empresa a apresentação de documentos e planilhas financeiras. Eles estavam ali, alegadamente, para garantir o cumprimento da intervenção na empresa, ordenada por um juiz da província de Mendoza, numa ação movida pelo concorrente Supercanal, por suposta concorrência desleal.Ocorre, não por acaso, que o Supercanal pertence ao Grupo Uno, dono de uma rede de jornais no interior do país. Os seus controladores, como o peronista José Luiz Manzano, que foi ministro no governo Menem, apoiam ostensivamente a presidente. Este ano, o faturamento do conglomerado com publicidade oficial chegou a US$ 3,7 milhões, quase nove vezes mais do que em 2010. Segundo o porta-voz do Grupo Clarín, Martín Etchevers, o Uno é "testa de ferro" do governo na Justiça. A intervenção, a rigor, foi feita para dar um verniz legal ao pretendido desmembramento da Cablevisión, como parte da obsessão de Cristina em arruinar o grupo. Em 2007, quando tudo ia bem entre a empresa e a Casa Rosada, o então presidente Kirchner aprovou a fusão da Cablevisión com a Multicanal, a gigante da TV por assinatura no país. Desde o ano seguinte, quando o Clarín tomou o partido dos ruralistas no seu conflito com os Kirchners, a presidente tem tentado de tudo para anular o negócio. Além das ações recorrentes de terrorismo de Estado, como a invasão da sede do jornal por mais de 200 fiscais da Receita, em setembro de 2009, no que seria uma "operação de rotina", e o piquete sindical diante de policiais impassíveis para impedir a circulação do diário, em um domingo de maio passado, o kirchnerismo se vale de duas armas. Uma é a Lei de Meios, aprovada também em 2009 e suspensa por uma liminar. Ao limitar a participação privada nos setores de TV e rádio, obrigará o Grupo Clarín a se desfazer de parte de seus ativos nessa área. A outra arma é o projeto que declara de "interesse público" a produção, venda e distribuição de papel-jornal na Argentina, monopolizadas pela companhia Papel Prensa, que abastece 172 jornais. O Grupo Clarín detém 49% do seu capital, enquanto a empresa que edita o diário La Nación possui 22% e o Estado argentino, 27%. A proposta, aprovada na Câmara e em vias de votação no Senado, proíbe a empresas de mídia impressa participação acionária na Papel Prensa. Com isso, direta ou indiretamente, o governo assumirá o seu controle - e condicionará o acesso ao insumo à docilidade dos jornais do país.