Imagem ex-librisOpinião do Estadão

TV Brasil: pública, estatal ou governamental?

Exclusivo para assinantes
Por Eugênio Bucci
4 min de leitura

Criada por medida provisória em 2007, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável pela TV Brasil, está às vésperas de uma possível mudança de comando. Notas nos jornais dão conta de que a atual diretora-presidente, Tereza Cruvinel, cujo mandato se encerra no próximo mês, não será reconduzida ao cargo. Nada existe de oficial a respeito. Por enquanto, só o que há são rumores.Há quatro anos Tereza interrompeu uma carreira brilhante no jornal O Globo para assumir uma função pública espinhosa, a de presidir uma empresa pública. Sua gestão enfrentou controvérsias, como seria inevitável, mas foi pautada pela tentativa de elevar a qualidade editorial da instituição e de fazer da EBC uma instituição menos estatal e mais pública. São metas respeitáveis.Quanto à qualidade, o saldo é positivo. Conheço alguma coisa desse assunto. Entre 2003 e 2007 presidi a Radiobrás (empresa que foi incorporada, ao lado da TV-E do Rio de Janeiro, pela atual EBC). Hoje, como observador, posso atestar que a programação da TV Brasil é bastante superior àquela que tínhamos no meu tempo. Quanto a transformar as emissoras de rádio e TV da EBC em emissoras verdadeiramente públicas, bem, nesse ponto continuamos atrasados.Para entender o atraso não adianta muito especular sobre quem sai ou quem vem. Isso é espuma. Muito mais essencial é verificar a quem cabe resolver a transição. A interrogação que interessa é outra: onde, afinal, será decidido o destino da TV Brasil? A resposta é tão esclarecedora quanto desalentadora: a instância máxima da EBC não está dentro da própria empresa, mas no Palácio do Planalto. De acordo com o artigo 19 da Lei n.º 11.652, de 7 de abril de 2008 (que efetivou a medida provisória de 2007), é a Presidência da República que nomeia o diretor-presidente e o diretor-geral da empresa.Esse mecanismo, apenas esse, já basta para um primeiro diagnóstico. A EBC, uma estatal como tantas outras, muito parecida com a velha Radiobrás, não é, na forma da lei, o que as democracias aprenderam a chamar de emissora pública. Nas emissoras públicas o executivo-chefe é escolhido por um conselho de representantes da sociedade. Nas estatais, quem escolhe o dirigente é o governante da vez. Por esse critério, portanto, ela é uma estatal, embora suas emissoras, como a TV Brasil, veiculem programas típicos de emissoras públicas.Pior ainda: além de ter a natureza jurídica de uma estatal, a EBC é encarregada de operar, produzir e veicular comunicação governamental. O artigo 8.º da lei de 2008 a incumbe de "prestar serviços no campo de radiodifusão, comunicação e serviços conexos, inclusive para transmissão de atos e matérias do governo federal", além de "exercer outras atividades afins, que lhe forem atribuídas pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República". A EBC reporta-se diretamente à Secretaria de Comunicação Social (Secom). Ela está legalmente subordinada a uma autoridade que lhe é externa, e essa autoridade, a Secom, tem por missão cuidar da imagem do governo federal. Logo, a EBC é parte orgânica da estratégia do Palácio do Planalto para construir e preservar a boa imagem do governo. Outra vez, isso não atende aos requisitos conceituais de uma emissora pública.É verdade que muitos que atuam na EBC se esforçam para que ela se afaste dos marcos oficialistas. Eu mesmo, quando presidi a Radiobrás, ajudei a dar início a essa corrente: queríamos transformar a velha radiofonia chapa-branca numa instituição de comunicação pública. Acontece que a lei de 2008, que deveria coroar esse projeto, foi tímida demais. Criou uma estatal que, entre outras incumbências, tem o dever de veicular o discurso governamental, como antigamente. Diante disso, o mínimo que se pode dizer, hoje, é que a EBC continua abrigando duas vocações antípodas: fazer comunicação pública, a exemplo da BBC inglesa ou da PBS americana, e prestar serviços de proselitismo governista ao Planalto, na linha da Voz do Brasil. A tensão interna, que se instalou por ali logo no início de 2003, não se resolveu com a lei de 2008 e não se resolveu até agora.Essa tensão se manifesta hoje na presença de dois conselhos, ambos previstos na Lei n.º 11.652: o Conselho Curador e o Conselho de Administração. O primeiro é uma inovação positiva (não havia nada parecido com ele na Radiobrás). Embora nomeado pela Presidência da República, reúne especialistas independentes e se inclina, no mais das vezes, na direção de estimular uma comunicação não governamental. Ocorre que esse primeiro conselho não exerce o poder de fato. Quem detém o comando da gestão na empresa é o segundo, o Conselho de Administração. Seus integrantes também são nomeados pela Presidência da República e, entre eles, há representantes de ministérios. Esse conselho é que manda. É ele que elege e destitui os seis diretores da empresa (com exceção do diretor-presidente e do diretor-geral, nomeados diretamente pelo Palácio).Cindida por essas duas vocações contraditórias, a estatal, hoje, tem mais cara de projeto de governo (e para o governo) do que de projeto da sociedade (e para a sociedade). Um projeto caro: o Palácio catapultou seu orçamento para a casa dos R$ 471 milhões/ano, um patamar superior ao de muitas emissoras privadas. Na contracorrente, o Conselho Curador toma decisões salutares, que desafinam do oficialismo. Há poucos meses propôs a extinção dos cultos religiosos da grade da TV Brasil, medida que deve entrar em prática no dia 25 de setembro. Também em 2011 denunciou a omissão do jornalismo da casa, que demorava a noticiar o escândalo do enriquecimento do então ministro Antônio Palocci. Essa centelha crítica mantém vivo o sonho da estatal que quer ser pública. Mas só isso não bastará.

 

JORNALISTA,  É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM