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Opinião|Um milagre, papa Francisco!

Atualização:

Novalis, poeta e teórico político conservador do século 19, afirma que a Igreja foi o modelo de todas as sociedades. Segundo ele, as pessoas comuns encontravam na vida católica "proteção, respeito, escuta". De fato, em milênios ela inspirou povos e governantes, nem sempre de modo esplêndido (a Inquisição, no setor judiciário). Não existe poder moderno sem que os hierarcas tenham indicado as vias e as técnicas de comando. Max Weber adianta que os processos burocráticos de governo nasceram na Cúria, com a centralização do mando pelo papa. Carl Schmitt, discípulo conservador de Weber, mostra que a catolicidade instaura a hegemonia do mando executivo, portador da suprema decisão (plenitudo potestatis papae) acima dos bispos. A máquina jurídica e religiosa, construída racionalmente, venceu as doutrinas conciliaristas que davam aos pastores reunidos peso maior do que ao romano pontífice. A tenaz oposição ao absolutismo papal, sobretudo após Lutero, inspirou as lutas contra o mando irrestrito dos reis e gerou as teses sobre a monarquia limitada. Exemplo dessa campanha temos na Franco Gália, tratado calvinista de François Hotman (1574). O parlamentarismo sempre foi avesso ao Executivo, combatendo-o na figura católica ou na tese laica do direito divino dos reis. O cardeal Caetano (Auctoritas Papae et Concilii sive Ecclesiae Comparata, 1511) exemplificara a dificuldade de conduzir os cristãos ao acordo entre papa (iudex ordinarium omnes, juiz comum de todos) e bispos. Um defensor da Igreja contra o Estado civil, o cardeal Bellarmino (ele causou longas digressões de Hobbes no Leviatã) pondera que "a monarquia temperada é melhor do que a pura" (De Summo Pontifice). O poder petrino sobre as igrejas é reforçado em 1870, no dogma da infalibilidade. Weber nele enxerga a base da organização curial, cujos diplomatas modelaram o acordo entre a Santa Sé e Mussolini, mais a desastrosa Concordata de Império com Hitler. O absolutismo do papa sofre quebras no Vaticano II, mas é refeito pela mente cálida de João Paulo II e mostra sua fragilidade sob Bento XVI, o que possibilita a eleição de Bergoglio. Marco Politi, respeitado na academia e na imprensa, acaba de publicar um estudo sobre os desafios do novo líder (Francesco tra i Lupi - Il Segreto di una Rivoluzione). Ele expõe o pontificado de Bento XVI e narra a conduta de Bergoglio à frente da Igreja argentina. No argentino ressalta o trabalho do bispo com seus padres e leigos. Após sumarizar os eventos que abalaram o trono pontifício, Politi descreve com saber maquiavélico o que chama de "golpe de Estado" cometido por Ratzinger. Maquiavélico: poucos cientistas políticos perceberam, com semelhante acume, os atos de um papa contra a Cúria tingida pela corrupção, sede de poder, baixa cortesania. Ao perder o controle, Bento XVI, no sigilo e com frio cálculo do tempo (O Príncipe teoriza esses elementos de modo ímpar), aplica o golpe perfeito. Se o Vaticano está dividido entre potentados da púrpura, terminemos as escaramuças entre eles e o trono. Com a renúncia, todos devem entregar os cargos, o que permite ao novo líder administrar a guerra intestina. Após a descrição do golpe papal, digna de Gabriel Naudé, Marco Politi analisa a rede das Igrejas nacionais e seus líderes no conclave. Ele expõe o desejo dos hierarcas de atenuar o centralismo católico. Capítulo importante é o quinto, O fim da Igreja imperial. A escolha de Francisco significa a retomada do colégio eclesiástico, porque não é mais possível admitir que os "bispos sejam meros prefeitos, subordinados a um pontífice monarca". Politi mostra o projeto, assumido por Bergoglio, de refazer o programa conciliar, estabelecendo comissões de consulta às Igrejas locais na busca de apurar temas da fé, da disciplina, costumes. Questionários foram distribuídos pelo mundo católico para ouvir os fiéis e sua hierarquia. O autor exagera a novidade de tais procedimentos. Em texto publicado na Revista de Economia Mackenzie (Reflexões sobre Impostos e Raison d'État, 2003), exponho o caso dos questionários presentes no Livro do Estado de Almas, feito sob a égide de Carlos Borromeu (1538-1584). Neles a Igreja tem um guia para saber a condição econômica, higiênica, social e religiosa dos católicos. As fichas são bem elaboradas e, diz um especialista de hoje, "só falta o computador" para sintetizar rapidamente os resultados. Depois, a técnica dos questionários serve aos soberanos civis como instrumento de sondagem para fins de impostos, controle e segurança, etc. Mesmo com a crise do Dictatus Papae, mudar o sentido do mando é difícil. Como observa Politi, "a ideia de uma hierarquia onipotente, que nunca erra, está profundamente enraizada na autocompreensão da Igreja Católica. Pio XII, no exercício do seu poder, gostava de enunciar: 'Não quero colaboradores, quero executores'". É a dura realidade que analiso em minha tese de doutoramento, Brasil, Igreja contra Estado (1979), odiada pela direita e pela esquerda eclesiásticas. Ainda em 2014 haverá um Sínodo com agenda precisa e, nele, emissários das conferências episcopais, "vindos de vários continentes, poderão exprimir-se com clareza sobre pontos específicos". Francisco deve responder, com atos e doutrina, ao repto do conservador De Maistre: "Se não há centro nem governo comum, não pode existir unidade nem, por conseguinte, Igreja universal (ou católica), pois nenhuma igreja particular tem o meio constitucional de saber se ela está em comunhão de fé com as outras"(Du Pape). O pastoreio deve manter a universalidade da Igreja, protegendo as nações e os indivíduos. A Igreja é modelo de toda sociedade. Caso Francisco seja bem-sucedido, talvez Brasília, demoníaca cúria sem Deus nem lei, bastião do absolutismo centralizador, escute os povos que habitam suas terras. Então, poderemos falar em democracia e federalismo. Por tal milagre, Francisco mereceria a glória dos altares...*Roberto Romano é professor da Universidade Estadual de Campinas, é autor de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva).

Opinião por Roberto Romano