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Opinião|Um olhar sobre o mundo atual

Atualização:

Yeats, com a intuição de grande poeta – e dos poetas esperamos a verdade, como dizia Hannah Arendt no seu Diário de Pensamento -, indicou num conhecido poema: “Things fall apart; the center does not hold/ Mere anarchy is loosed upon the world” (“as coisas se desmancham, o centro não se sustenta/ uma mera anarquia está solta no mundo”). Instigado pela percepção de Yeats, atrevo-me a tentar, inspirado pelo que fez Valéry na primeira metade do século 20, um olhar reflexivo sobre o mundo em que estamos inseridos. O grande desafio que permeia o mundo atual não é o da tradicional lida com as asserções e os confrontos de hegemonias. É o de, preliminarmente, compreender, para poder enfrentar o ímpeto da desordem que torna a vida internacional crescentemente perigosa e instável. Como destacou Pierre Hassner, importante analista francês, mesmo para os estudiosos da matéria é complicado entender o que se passa. A realidade internacional apresenta-se de maneira ambígua e contraditória e está muito difícil organizar o conhecimento, diferenciando o estrutural do conjuntural, avaliando o peso das “forças profundas” e apontando em que medida esclarecem os grandes eventos que vêm sacudindo o mundo. Para essa nebulosa contribui a dificuldade de identificar a tensão predominante, iluminadora da dinâmica dos movimentos como foi a guerra fria, inclusive no plano ideológico, em cujas brechas despontaram a polaridade Norte-Sul e o processo de descolonização. O sistema internacional atual tem inter alia como pano de fundo os desdobramentos da queda do Muro de Berlim, que favoreceu a globalização econômica, financeira e jurídica; os ataques terroristas aos EUA em 2001, que puseram em novos termos os problemas da segurança internacional; o unilateralismo da intervenção militar norte-americana no Iraque em 2003, que vem tendo um impacto desestabilizador no Oriente Médio irradiado para fora da região; o deslocamento do dinamismo econômico para a Ásia, a emergência da China e as tensões políticas de equilíbrio na área; os regionalismos na vida do comércio internacional, que vêm minando o espaço de cooperação multilateral da OMC; o agravamento dos problemas ambientais, que comprometem a sustentabilidade do planeta, e os desafios, nesse contexto, da transição para uma economia de baixo carbono. Tudo isso alimenta exponencialmente o aflorar de uma multiplicidade de tensões, tanto complementares quanto contraditórias. Isso se vê agravado porque a clássica lógica do sistema internacional como sistema interestatal com suas regras formais e informais se vê comprometida pela existência de “Estados falidos” (como Iraque e Líbia) ou em condição pré-falimentar (como alguns países da África). A isso se adiciona a precarização do clássico princípio da integridade territorial dos Estados, de que é exemplo a anexação da Crimeia pela Rússia. O sistema interestatal vê-se igualmente minado pela porosidade das fronteiras, que enseja na era digital o ciberespaço da instantaneidade e da multiplicação das interações, que internalizam o “externo” na vida cotidiana dos países. Nesse contexto, recordo a dicotomia processo-drama proposta por Raymond Aron. O processo do avanço do conhecimento, do potencial da técnica, da expansão econômica em suas diferentes formas, da agregação em escala planetária do campo estratégico-diplomático, que, em conjunto, a partir do século 20 propiciaram a efetiva unificação histórica da humanidade, não assegura a contenção ou o deslinde do drama do confronto das vontades. O ímpeto contemporâneo dessas interações do interno com o externo, dada a heterogeneidade das sociedades e dos valores, não é explicável apenas pela lógica dos interesses dos Estados e dos mercados. É necessário inserir no mapa das relações internacionais, para o apropriado entendimento das múltiplas tensões, a globalizada propagação das emoções – entre elas, o medo e a vaidade, a humilhação e a cólera, o ressentimento e a vingança. Estas, com seu elã fragmentário, vêm corroendo a política internacional de direitos humanos, inaugurada com a Declaração Universal de 1948, tornando precária e esquiva a tarefa da política como instância de mediação apta a administrar as tensões, para ensejar a coexistência. O zelotismo antiocidentalista, a islamofobia, o antissemitismo, a xenofobia, os fundamentalismos de toda natureza, a sublevação dos particularismos, o recrudescimento identitário são disso uma expressão. Também o é a destrutividade erga omnes do terrorismo contemporâneo. No que tange à guerra contra o terrorismo, intensificado pelos atentados de Paris e que se irradia tendo no “Estado Islâmico” uma das suas bases, recorro a outra lição de Aron sobre a dinâmica persuasão-subversão. Para a coligação de Estados que travam esta guerra assimétrica contra um ator não governamental, ganhar exige não perder. Para o terrorismo o ganhar se cinge a não perder e poder sobreviver para continuar promovendo a ubiquidade do medo.  Disso tudo provém, como avalia Pierre Hassner, uma profunda alteração na clássica divisão da humanidade entre nômades e sedentários. Os nômades hoje são de dois tipos: os integrados e os excluídos do mundo comum. Dos integrados participam, para o bem ou para o mal, tanto os ostensivos ligados às finanças, à economia, ao direito, às profissões, à pesquisa, às universidades quanto os ocultos das redes da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro, do terrorismo, do tráfico de drogas. Os excluídos são a crescente massa de refugiados que fogem sem encontrar destino e acolhida, das perseguições, das guerras civis, dos conflitos religiosos, da falta de oportunidades. Compõem a trágica categoria dos deslocados no mundo que padecem da globalização da indiferença de que fala o papa Francisco. Os sedentários reagem aos nômades no âmbito interno dos Estados pelos populismos excludentes.*Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

Opinião por Celso Lafer
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