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Um par de algemas em Yale

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Por Eugênio Bucci
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A detenção da jornalista Claudia Trevisan, correspondente deste jornal em Washington, quinta-feira passada, no câmpus da prestigiosa Universidade Yale, não deve ser interpretada meramente como uma arbitrariedade ocasional. Não que não tenha havido prepotência no episódio. Houve agressividade, rigor excessivo e humilhação desnecessária. A jornalista tentava entrevistar o ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que dava uma conferência na Faculdade de Direito, quando acabou algemada e trancafiada por quase cinco horas, primeiro dentro de uma viatura e depois numa cela da polícia dentro da universidade. Indiciada por "invasão de propriedade", ficou obrigada a comparecer diante de um juiz em New Haven. O saldo é péssimo. Mesmo que saia da audiência livre de qualquer acusação, o que é provável, o agravo que sofreu persistirá com ela por muito tempo ainda.Não apenas com ela. A ofensa estende-se contra todos os jornalistas - os brasileiros de modo especial - e se prolongará como um travo na autoestima. Não, o que aconteceu em Yale há uma semana não foi apenas um excesso, um abuso incidental (embora, em termos estritamente formais, os responsáveis pela segurança no câmpus imaginem que estivessem cumprindo seu dever estrito ao agir como agiram). O que se passou ali, sob o teto de uma escola cuja tradição de liberdade é um dos pilares da democracia americana, foi algo mais sério do que um erro de dose ou um arroubo de autoritarismo. As algemas de Yale traíram um mal mais profundo no estado de ânimo do poder americano, um mal que, por infelicidade, foi deixar escapar suas garras tensas justo num dos berços do melhor saber jurídico da nossa era. O encarceramento da jornalista não deve ser entendido como um acidente de percurso, interpretação que interessa a uns e outros que tentam ou tentarão desculpar-se pelo mau jeito, mas como uma espécie de "ato falho" da ideologia de segurança, por meio do qual se pode entrever uma mentalidade bem pouco amistosa em relação aos profissionais que se ocupam de vigiar o poder e informar a sociedade.O clima é hostil. Acuados por denúncias consistentes de que andam bisbilhotando a vida alheia na internet, lançando mão de ferramentas digitais clandestinas e maliciosas, o poder americano e seus aliados tendem a externar reflexos mais agressivos. Não que o presidente Barack Obama em pessoa tenha dado a ordem de ultrajar uma correspondente brasileira, não se trata disso. Não há perseguições premeditadas, tampouco estamos diante de um enredo próprio das teorias conspiratórias. O que se vem avolumando de forma preocupante e consistente é uma tensão vasta, impessoal e abespinhada, que contribui para dar mais assertividade física, digamos assim, aos atos de autoridades que, nas potências ocidentais, se julgam investidas da função de combater qualquer violação da ordem. É por aí que entendemos por que a rispidez e a intolerância vêm subindo de tom.Não nos esqueçamos da detenção do brasileiro David Miranda no aeroporto londrino de Heathrow, em agosto. Namorado do jornalista americano Glenn Greenwald, que trabalha para o diário britânico The Guardian (Greenwald é o autor das reportagens que revelaram ao mundo as suspeitas de que o governo americano mantém um gigantesco arsenal de espionagem das comunicações digitais no mundo todo), Miranda ficou em poder da Polícia Metropolitana de Londres por quase nove horas, acusado de transportar informações roubadas, que estaria trazendo de Berlim. Foi obrigado a entregar seu equipamento eletrônico aos policiais.O que se deu no Aeroporto de Heathrow deixou muito claro: o mundo dito democrático não tem sido o lugar mais aprazível da galáxia para repórteres ou amigos de repórteres. Agora, as algemas em Yale vêm confirmar o mau tempo - ou talvez indiquem que o tempo vai piorar mais ainda.A revista americana Slate achou que dava para fazer piada, e fez: "Repórteres, cuidado. Se vocês tentarem entrevistar uma pessoa importante que esteja visitando a Faculdade de Direito de Yale, precisarão agir com cautela para não acabar atrás das grades". Outros, em lugar de anedotas, preferiram protestar com mais circunspecção. O jornalista uruguaio Claudio Paolillo, presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), repudiou em nota "a atitude desproporcionada de vigilância e segurança na universidade, o que impediu o trabalho jornalístico". Joaquim Barbosa também se manifestou sobre a gravidade do que se perpetrou contra uma brasileira a poucos metros de onde ele fazia sua palestra. Por intermédio de sua assessoria, o presidente do STF avisou que só havia tomado conhecimento do fato na manhã de sábado (portanto, dois dias depois) e declarou que lamentava o ocorrido, pois, a seu modo de ver, a correspondente estava lá "apenas fazendo o seu trabalho". Quanto à própria Universidade Yale, esta divulgou nota, conforme noticiou o Guardian, afirmando que não prestará queixa contra a repórter.Melhor assim, é claro. Que a normalidade se restabeleça o quanto antes. O problema, contudo, é maior que um excesso cometido por homens fardados incumbidos de zelar pela segurança de uma universidade. Se interpretada como um "ato falho" que escapou de um nervo mais extenso e mais profundo das forças e da (escassa) inteligência de segurança nacional, a brutalidade que se manifestou em Yale soa como um alarme. Não nos percamos em filigranas ou em tecnicalidades a respeito de regras que orientam a ação dos policiais que alegam apenas cumprir ordens. O que houve ali foi mais que um constrangimento despropositado, mais que um ritual de humilhação: foi mais um sinal ostensivo de que, entre o direito à informação e o rigor da ordem posta, o piloto automático do poder (e dos seus micropoderes capilarizados) vai preferir cada dia mais a segunda alternativa.*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM.